Fusca com motor refrigerado a água: uma ideia que não foi pra frente

há 2 meses 5

Wolfsburg, 2017. A viagem era para conhecer a segunda geração do Tiguan, que seria lançada no Brasil no ano seguinte. E é claro que eu aproveitaria a oportunidade para visitar o museu da Volkswagen mais uma vez. 

Não estou, porém, falando do ZeitHaus (Casa do Tempo), aquele moderno e suntuoso museu da VW na AutoStadt, com cinco andares envidraçados recheados com clássicos ultrabrilhantes de diversas marcas. Meu point em Wolfsburg é outro e fica a 2,5 quilômetros dali, na cinzenta Dieselstrasse, número 35: o Stiftung AutoMuseum Volkswagen (Fundação Volkswagen AutoMuseum). 

Fusca com motor EA111 do Polo - houve uma época em que o protótipo ficava escondido

Foto de: Motor1.com

Inaugurado em 1985, o AutoMuseum é uma contrução modesta, mal iluminada, de apenas um piso e muitas goteiras. Seu acervo, em compensação, inclui diversos protótipos que se salvaram — sabe Deus como — de ser escrapeados após o período de desenvolvimento e testes. Estão ali, por exemplo, um punhado de candidatos a sucessores do Fusca, mas que jamais chegaram à produção em série.

Mas voltemos à visita de 2017… Enquanto percorria o salão de exposições principal (e, aliás, único) do AutoMuseum, reparei que havia uma irresistível portinha entreaberta, que dava para  uma área longe dos olhos do público: a reserva técnica da Fundação. E ali, protegidos da poeira por finas capas de plástico transparente, havia dezenas de protótipos e carros raros, coisas desconhecidas até para quem estuda a história da VW.

Um exemplar, particularmente, me chamou a atenção: um simples Fusca “Fafá” branco, mas com aberturas extras no capô traseiro e um ressalto retangular no suporte de placa. Com as mãos trêmulas de quem viola a tumba de Tutancâmon, levantei a fina capa, abri o capô e… no lugar do clássico boxer refrigerado a ar, havia um motor EA111 — quatro-em-linha refrigerado a água que, no Brasil, equipou o Fox, versões da família Gol e as Kombi pós-2005, para citar apenas alguns.

Fusca com motor EA111 do Polo - protótipo projetado para o mercado mexicano em 1984  (4)

Foto de: Motor1.com

O que aquele motor “a água” estava fazendo no maior ícone da refrigeração a ar? O AutoMuseum, pra variar, estava bem vazio. As poucas pessoas que havia não souberam dizer nada sobre o besouro misterioso. Na internet tampouco encontrei informações.

Um salto de 7 anos nessa história e fomos em nova visita ao AutoMuseum. Era meu aniversário, minha única tarde livre em Wolfsburg e fazia um bocado de frio. Talvez comovida com a situação, a administradora topou abrir a exposição só pra mim. O melhor é que, lá dentro, havia um presente-surpresa: o besouro d’água, desta vez, estava em exibição! Ao lado do carro, uma plaquinha explicava em alemão: “Käfer mit Polo-Motor” (Fusca com motor de Polo). E trazia breves informações:

“Como o boxer refrigerado a ar não teria futuro em termos de emissões, na década de 70 tiveram início os trabalhos de instalação de boxers refrigerados a água. Obteve-se sucesso na adaptação da Kombi T3, mas com o Fusca não se pôde ir além dos experimentos.”

Fusca com motor EA111 do Polo - protótipo projetado para o mercado mexicano em 1984  (8)

Foto de: Motor1.com

“No início da década de 80, chegou a ser instalado um motor de Polo (EA111/VM 9581) em um Fusca fabricado no México. Para tanto, foi preciso modificar a tampa traseira, entre outras coisas. Mais tarde, o motor do EA 111 foi usado na Kombi T2C brasileira, mas não no Fusca.” 

Na mesma placa, há uma ficha com alguns dados. Ano de construção: 1984; Motor: quatro cilindros em linha, refrigerado a água; Cilindrada: 1.043 cm³; Potência: 45 cv; Velocidade máxima: 130 km/h.

Até o final dos anos 60, a VW tinha nos motores refrigerados a ar seu grande argumento de vendas. “Ar não ferve”, diziam nas propagandas. Essa cultura começou a mudar quando a companhia comprou a Auto Union, levando junto o projeto do Audi F103 (1965).

Com o avanço dos radiadores selados, das ventoinhas elétricas, das válvulas termostáticas e de líquidos de refrigeração mais tolerantes a situações extremas de frio e calor, ter um motor “a ar” já não representava mais tanta vantagem assim em termos de confiabilidade. Controlar a temperatura ideal de funcionamento havia ficado mais fácil, o que tornava os motores “a água” mais eficientes e menos poluentes. A partir do início dos anos 70, as emissões de gases passaram à pauta do dia, com normas cada vez mais rígidas. Para completar, os “aircooled” eram mais barulhentos. 

Na Europa, tanto o Golf I (1974) quanto o Polo I (1975), anunciados como sucessores do Fusca, tinham motores de quatro cilindros em linha com refrigeração líquida. E, para aprimorar a Kombi T3 (modelo de terceira geração e linhas retas que nunca foi fabricado no Brasil), a Volkswagen criou outra solução: o Wasserboxer, um motor que mantinha a concepção do motor horizontal de quatro cilindros opostos, mas com refrigeração a água.

O motor vinha do VW Polo da época

Foto de: Motor1.com

Chegamos ao começo dos anos 80, e o velho besouro continuava em produção apenas no México e no Brasil, ainda vendendo muito bem nestes dois países. Para atualizar seu propulsor, a empresa chegou a experimentar um Wasserboxer cortado ao meio em um Fusca mexicano. 

Apesar de ter sido feito na Cosworth, firma britânica famosa por fornecer motores para a F-1, o boxer de dois cilindros refrigerado a água, com seus 956 cm³, rendia apenas 34 cv. O detalhe mais bizarro do protótipo era que o enorme radiador ia rente à parte interna do capô traseiro. Para se fazer qualquer serviço mecânico, basculava-se o radiador para o lado, juntamente com a ventoinha elétrica. Obviamente não foi adiante.

Uma solução mais simples, barata e aplicável no mundo real seria “pendurar” o motor quatro-em-linha do Polo lá atrás, na longitudinal… Para testar a viabilidade dessa ideia, foi montado o Fusca mexicano branco que hoje descansa em Wolfsburg. Na tranquila solidão do museu (eu era o único visitante, lembram-se?), foi possível abrir o capô, deitar-me no chão e examinar mais detidamente a mecânica do carro. Já as portas estavam trancadas.

Segundo a ficha, foi usada a versão de 1.043 cm³ e 45 cv do EA111, que equipava os Polo II de menor cilindrada na época (havia ainda os 1.1 e 1.3). Mesmo assim, o Fusquinha poderia alcançar os 130 km/h. Lembramos que o brasileiro Itamar 1993-1996, com seu motor boxer 1.600 de 58 cv (a álcool), chegava à máxima de 140 km/h se o vento estivesse a favor.

Fusca com motor EA111 do Polo - protótipo projetado para o mercado mexicano em 1984  (6)

Foto de: Motor1.com

Foi preciso uma certa manha para encaixar o motor “em pé” no cofre desenhado para um boxer. Diferentemente do que se vê em muitos Fuscas adaptados com AP no Brasil, a tampa traseira nem precisou ser muito modificada. Um discreto ressalto no suporte da placa permitiu ajustar tudo no lugar. Em cada lado, foram feitas aberturas extras para baixar a temperatura do compartimento. A luz da placa teve que subir um pouco. 

O arranjo dos componentes periféricos é bem diferente do que se vê nas Kombi flex nacionais 2006-2013, também equipadas com o EA111 (mas de 1,4 litro e 80 cv). No protótipo do Fusca “a água” mexicano, o vaso de expansão vai no lado esquerdo e o alternador vai no lado direito — o inverso da nossa Kombi. Os calços também eram bem distintos. 

Mas o grande problema era o radiador do protótipo mexicano, que ia no lado esquerdo, projetando-se alguns centímetros abaixo do fundo do carro. Uma chapa grossa tentava protegê-lo de pedras e dos “topes” (como se diz quebra-molas no México), reduzindo ainda mais o vão livre. Uma ventoinha elétrica forçava o fluxo de ar que passava pelo radiador e saía por uma das gradinhas extras do capô traseiro. Dr. Ferdinand Porsche deve ter dado cambalhotas na sepultura.

Fusca com motor EA111 do Polo - protótipo projetado para o mercado mexicano em 1984  (7)

Foto de: Motor1.com

Concebido em 1984, o besouro d’água foi abortado ainda em fase embrionária e o “Vocho” mexicano continuou a ser fabricado com o boxer refrigerado a ar, como Deus mandou. Em 1991 e 1992, o modelo ganhou catalisador e injeção eletrônica para baixar os níveis de emissões. A produção só foi encerrada em 2003.

Já o Fusca brasileiro nem injeção ganhou. Voltou a ser fabricado por aqui entre 1993 e 1996, mantendo o motor boxer “a ar” e um par de carburadores. A maior novidade foi o catalisador que, contudo, era diferente do usado na versão mexicana.

O mais parecido que se chegou a um Fusca refrigerado a água “de fábrica” foram os New Beetle (1997-2011) e Beetle (2011-2019) que, na verdade, eram os Golf Mk4 e Mk6 travestidos de besouro.  A fábrica da Via Anchieta foi a última do mundo a manter a produção de VW com o clássico motor boxer. Em dezembro de 2005, a Kombi “ar” saiu de cena, dando lugar às equipadas com o motor EA111.

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