Citroën-Kégresse: os veículos todo-terreno que abriram as trilhas do mundo

há 6 horas 1

Que a Citroën foi uma das primeiras fabricantes a adotar tração dianteira, todos sabem. Mas pouco se associa a marca francesa ao pioneirismo em veículos todo-terreno. Muito antes da invenção do Jeep e da popularização dos 4x4, eram os Citroën que superavam as trilhas mais difíceis do mundo com seus autochenilles.

Esses carros com lagartas atreladas ao eixo traseiro eram frutos de uma parceria de André Citroën com o engenheiro Adolphe Kégresse. Juntos, eles provaram que o automóvel podia vencer caminhos aparentemente insuperáveis, seja no Saara ou na China — e um pouco dessa história chegou ao Brasil! 

No salão Rétromobile, que aconteceu em Paris entre os dias 4 e 9 deste mês, uma mostra especial trouxe à luz o nome de Kégresse, um gênio esquecido. Aproveitamos o gancho para contar aos nossos leitores um pouco do papel desse inventor na fase pioneira do off-road.

A vida de Adolphe Kégresse tem ares de romance. Filho de Gustave Adolphe Kégreisz, diretor de uma fábrica têxtil em Héricourt (perto da fronteira com a Suíça), e de Sophie Emilie Buchter, comerciante de tecidos, Kégresse recebeu seu sobrenome devido a um erro de registro no cartório ao nascer, em 1879. Cresceu desenvolvendo uma paixão pela mecânica e aprimorou seus conhecimentos na Escola Prática e Industrial de Montbéliard.

No serviço militar, instalou um motor em uma bicicleta, criando um dos primeiros ciclomotores da história. De volta a Héricourt, foi trabalhar na pequena fábrica de automóveis Jeanperrin, mas sua ambição o levava a sonhar com novos horizontes.

Um dos carros-lagartas do czar capturados pelos sovietes na Revolução de 1917

Foto de: Jason Vogel

Um dos carros-lagartas do czar capturados pelos sovietes na Revolução de 1917

A serviço do czar 

Incentivado por um compatriota, Kégresse partiu para a Rússia em 1903. Em São Petersburgo, conseguiu emprego como mestre mecânico em uma companhia ferroviária. Seu destino mudou quando, certo dia, ajudou a liberar o trem imperial, bloqueado pelo gelo. Um dos membros da comitiva real, impressionado com sua habilidade, o contratou como mecânico nas garagens do czar Nicolau II.

Reconhecido por sua inventividade, Kégresse foi nomeado diretor técnico dos serviços automotivos do czar em 1905, liderando uma equipe de 20 mecânicos. Sua proximidade com a família imperial se confirmou quando o próprio czar intermediou seu casamento com Héléna Moniakoff, viúva de um oficial do exército russo. O casal teve três filhos.

Kégresse recebeu um desafio inusitado: encontrar uma maneira para que o czar continuasse a caçar lobos no inverno, apesar da neve profunda. O francês, então, projetou um sistema que combinava esquis na dianteira e uma cinta acoplada às rodas traseiras, permitindo o deslocamento sobre a neve fofa. Em 1913, essa invenção resultou na patente das primeiras lagartas flexíveis de borracha. Eram as autochenilles (auto-lagartas em francês).

Demonstração do primeiro auto-lagarta Citroën-Kégresse (1920)

Foto de: Jason Vogel

Demonstração do primeiro auto-lagarta Citroën-Kégresse (1920)

Encontro com Citroën

Após servir ao exército russo no início da Primeira Guerra Mundial, Kégresse teve de fugir da Rússia com sua família no início da Revolução Bolchevique. Depois de um curto período na Finlândia, retornou à França em 1919, trazendo apenas sua patente das lagartas de borracha. 

Por meio de Georges Schwob, empresário e engenheiro ligado à recém-fundada Citroën, Kégresse foi apresentado a Jacques Hinstin, concessionário da marca em Seine-et-Oise (na Grande Paris) e parceiro de André Citroën na fabricação de engrenagens.

Em outubro de 1920, num terreno acidentado nos arredores de Paris, André Citroën assistiu a uma demonstração de três carros 10 HP Type A — o primeiro modelo da marca — equipados com lagartas Kégresse,. Fascinado, declarou: "Essa invenção é minha!" 

O empresário garantiu a exclusividade da patente, registrada como "Citroën-Kégresse-Hinstin", e criou em sua fábrica um departamento para veículos todo-terreno sobre lagartas. Rapidamente, a Citroën organizou demonstrações espetaculares nos Alpes e nos Pirineus.

O modelo P1T (ou K1) foi o primeiro veículo pequeno com esteiras adotado pelo exército francês, a partir de 1922. Adaptados a partir de chassis já existentes, esses off-road tinham a vantagem de transpor terrenos acidentados e operar de forma silenciosa

Cada truque ou “bogie”, com esteiras rolantes de borracha, tinha duas rodas com 500 mm de diâmetro (uma motriz, outra intermediária), e mais quatro rodas de carga, com 200 mm de diâmetro. Um par de molas semi-elípticas em cada lado do chassi funcionava como suspensão para os conjuntos de lagartas.

Um P21  cruza o Deserto de Gobi, na Expedição Amarela

Foto de: Jason Vogel

Um P21 cruza o Deserto de Gobi, na Expedição Amarela

Começam as expedições

Este sistema de esteiras abriu caminho para grandes aventuras todo-terreno, que fortaleceram a imagem da Citroën. A primeira expedição para demonstrar todo o potencial dos autochenilles foi a Travessia do Saara, entre fim de 1922 e o início de 1923. Cinco exemplares do K1 percorreram 3 mil quilômetros em pleno deserto entre as cidades de Touggourt, na Argélia, e Tombuctu, no Sudão Francês (atual Mali).

Os K1 eram a versão todo-terreno do Citroën 10 HP Type B2. Seu motorzinho de quatro cilindros e 1 452 cm³ rendia modestos 20 cv. Com as lagartas de borracha, a velocidade máxima era reduzida para 29 km/h. Mas os carros chegaram ao destino sem dificuldades, numa aventura que antecedeu em 56 anos o primeiro rali Paris-Dakar! 

Cartazes francês e brasileiro do filme sobre a travessia da África

Foto de: Jason Vogel

Cartazes francês e brasileiro do filme sobre a travessia da África

Croisière Noire

Os veículos foram gradualmente aprimorados, culminando no modelo P4T, que participou de uma empreitada ainda mais ousada: a Croisière Noire (Travessia Negra), realizada entre outubro de 1924 e junho de 1925.

Essa expedição automobilística percorreu o continente africano de norte a sul, promovendo a marca Citroën e explorando a possibilidade de se estabelecer uma linha regular de transporte motorizado entre as colônias francesas na África. 

Oito autochenilles rodaram 20.000 km. Partiram de Béchar, na Argélia, cruzaram o Saara e seguiram juntos até Kampala, em Uganda. Daí a caravana se dividiu em quatro grupos. Um foi até a Cidade do Cabo, na África do Sul. Outros foram embarcados para Madagascar.

Os veículos — que mantinham o mesmo motor do modelo P1T (K1) — foram adaptados para enfrentar as duras condições africanas. O sistema de refrigeração do motor foi modificado com um recuperador de vapor acima do radiador e elementos laterais para dobrar sua superfície de resfriamento.

A transmissão passou a contar com seis marchas, em vez de três, e o diferencial recebeu um bloqueio semelhante ao dos veículos com tração 4x4 de décadas depois. Além disso, a altura em relação ao solo foi aumentada em cerca de 2 cm. Sem carga, cada carro desses pesava 1.135 quilos. Em uso fora de estrada, o consumo de gasolina girava em torno de 3,3 a 5 km/l. Quando o piso era bom, chegava a 6,2 km/l.

Na viagem de 1924, os Citroën-Kégresse P4T tiveram seus radiadores aprimorados

Foto de: Jason Vogel

Na viagem de 1924, os Citroën-Kégresse P4T tiveram seus radiadores aprimorados

Croisière Jaune

Após o modelo P4T, a Citroën desenvolveu os modelos P7T e 7 bis entre 1925 e 1927. Em 1928, surgiu o P10, trazendo melhorias no sistema de acionamento das esteiras, que se tornaram mais resistentes graças a uma combinação de placas metálicas e blocos de borracha.

Em 1929, foi lançada a versão P10-1929, com chassi e motor (32 cv) do Citroën C4 da época. Nasceu então a ideia de uma aventura ainda mais audaciosa: a Croisière Jaune (Travessia Amarela), que ligaria Beirute, no Líbano, a Pequim, na China, em 315 dias.

Foram necessários três anos para preparar a missão: tempo para delinear a rota, realizar um reconhecimento prévio e obter todas as autorizações, tanto para atravessar diferentes países quanto para instalar acampamentos e pontos de reabastecimento.

As negociações com a China foram particularmente difíceis. A expedição foi dividida em dois grupos de 14 autochenilles, cada um seguindo um trajeto distinto. O grupo Pamir partiu de Beirute, enquanto o grupo China saiu de Tianjin, encontrando-se posteriormente em Ürümqi, no nordeste da China.

A missão, realizada entre abril de 1931 e fevereiro de 1932, deveria ser composta, majoritariamente, pelo modelo mais recente de auto-lagarta, o pesado P21, que teve sete unidades fabricadas a partir do chassi do Citroën C6 de passeio, com motor de seis cilindros. O grupo Pamir, contudo, acabou utilizando o modelo P17, mais leve.

Durante a Croisière Jaune, as condições extremamente adversas — incluindo uma passagem pelo Himalaia, a 4.100 m de altitude — exigiram o completo desmonte dos autochenilles para superar alguns obstáculos. Os veículos foram transportados em partes de 35 kg e remontados para completar a jornada.

Além de fartamente noticiadas nos jornais e revistas de todo o mundo, essas expedições eram registradas com arte por equipes de cinegrafistas. Exibidos nos cinemas, esses documentários mesclavam geografia, antropologia e aventura — além, é claro, de fazer propaganda da Citroën. No Brasil, o filme “A Cruzada Negra” foi anunciado em 1929 sob o apelo do “nu exótico de verdadeiras deusas de ébano!”. 

Os Citroën-Kegresse mereceram uma mostra especial no salão Rétromobile, realizado este mês em Paris

Foto de: Jason Vogel

Os Citroën-Kegresse mereceram uma mostra especial no salão Rétromobile, realizado este mês em Paris

No Brasil, uso na agricultura

Os auto-lagarta chegaram a ser vendidos no Brasil. O agente dos Citroën-Kégresse no país era o coronel Pierre Cahuzac, um veterano aviador da Primeira Guerra que chegou aqui com a missão militar francesa (contratada para modernizar nosso Exército). 

Em 31 de agosto de 1923, os Citroën foram demonstrados no Campo de Marte, em São Paulo. Dois meses depois, Washington Luis, então presidente do estado de São Paulo, experimentou o autochenille e classificou o veículo como “um cruzamento de jacaré puro-sangue com tanque”.

O modelo era oferecido como trator para lavouras de café, algodão, arroz etc, servindo para puxar pequenas carretas de carga ou mesmo arado. Outra utilização possível, segundo um anúncio da época, era o transporte de toras até a serraria ou sacas da fazenda até a estação. Segundo um anúncio publicado em 1924 na revista “Chacaras e Quintaes”, o veículo fora adotado nas repartições agrícolas de São Paulo e da França. A propaganda citava a expedição pelo Saara como argumento de vendas.

Em 1925, a revista “O Criador Paulista” publicou uma reportagem mostrando a versatilidade do autochenille, que possibilitava “a penetração da locomoção mecânica até zonas ainda virgens”... Segundo a publicação, o modelo podia rebocar até 6 toneladas. Parado, o Citroën servia para mover máquinas de beneficiamento de café, arroz ou algodão e ou, simplesmente, tocar um gerador. Poderia ser utilizado ainda no combate a incêndios, com levando uma bomba d’água acionada pelo motor do próprio carro.

“Este é o único trator que não estraga as estradas, mesmo rebocando pesos consideráveis. A razão disso é a grande superfície de contato das lagartas com o solo”, dizia o texto. As lagartas até tornavam o piso mais firme, enquanto os caminhões comuns, quando muito carregados, faziam o maior estrago nas estradas de terra.

Os Citroën-Kegresse mereceram uma mostra especial no salão Rétromobile, realizado este mês em Paris (1)

Foto de: Jason Vogel

Os Citroën-Kegresse mereceram uma mostra especial no salão Rétromobile, realizado este mês em Paris (1)

Câmbio automatizado com duas embreagens, em 1936

Além de servir a expedições e agricultura, os Citroën-Kégresse foram usados pelas forças armadas de França, Argentina, Chile, Bélgica, Alemanha, Reino Unido, Itália, Japão, Países Baixos, Polônia, Espanha e até Estados Unidos. 

Os autochenille franceses venceram duas concorrências nos EUA, em 1925 e 1931 — os militares norte-americanos acharam o modelo tão eficiente que compraram as patentes para produzir localmente as lagartas. E esse foi o ponto de partida para o desenvolvimento dos veículos M2 e M3 Half-Track, amplamente usados pelas tropas aliadas na Segunda Guerra. Os alemães também adaptaram os conceitos de Kégresse em diversas de suas viaturas, incluindo aí uma versão meia-lagarta do Kübelwagen (o jipe VW) e o Goliath, um carro-bomba por controle remoto, feito para explodir tanques.

Em 1935, pouco antes de morrer, André Citroën — a essa altura falido e com um câncer terminal — confidenciou à sua família que, caso sua saúde permitisse, iniciaria um novo empreendimento com dois sócios: Ettore Bugatti e Adolphe Kégresse.

Com a aquisição da Citroën pela Michelin, o departamento de veículos sobre lagartas foi dissolvido, levando Kégresse a fundar a SEK (Société d'Exploitation Kégresse) ainda em 1935. A produção dos autochenilles foi então assumida pela fábrica de caminhões francesa Unic e prosseguiu até 1940. Ao todo, foram fabricadas 5.795 unidades dos auto-lagartas.

A SEK, por sua vez, ainda teve tempo de criar projetos inovadores, como o da caixa de câmbio automatizada Autoserve (1936), com acionamento hidromecânico das marchas e dupla embreagem. Essa transmissão não chegou a ser usada no Citroën Traction Avant, que era o objetivo original, mas antecipou em décadas a caixa PDK dos Porsche de corridas dos anos 1980 e a DSG, lançada pela VW em 2003.

Após a invasão alemã da França em 1940, Kégresse refugiou-se em Saint-Jean-de-Luz, no sudoeste do país. A essa altura, ele já tinha cerca de 200 patentes registradas mas, temendo que seus projetos caíssem em mãos inimigas, destruiu seus próprios desenhos. Mais tarde, retornou à sua casa em Croissy-sur-Seine (a 20 km de Paris), onde morreu em fevereiro de 1943, aos 63 anos de idade, vítima de um aneurisma. Não chegou a ver seu país ser libertado dos nazistas.

O êxito do Jeep durante a Segunda Guerra mudou os conceitos de off-road, substituindo os meia-lagarta pelos 4x4 que conhecemos hoje. Mas foram os Citroën-Kégresse que abriram as primeiras trilhas da mobilidade com veículos leves todo-terreno.

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