Toda pessoa é um canto que ninguém viu. Passa a existir ao se ver nos olhos do outro que a observa. Cria a imagem de si mesma a partir do reflexo dos tantos pares de espelhos que, em um singelo momento, mimetizam seu inverso particular. Reconhece-se. Aos poucos, faz-se o povo —um retrato multifacetado do país. Um todo que luta para não se estilhaçar.
Na recôncava ida ao íntimo, a pessoa-canto se enxerga como ponto central da vida marginalizada. Orbita sobre os sentimentos, naufragando no límbico oceano de desejos escondidos pelas profundezas dos verbos ser e estar. São tantas que parece se desconhecer manhã após amanhã quando, sob efeito do sono, encara-se diante do espelho. Nesta hora, a pessoa-canto se cala. Um parto novo, uma ida sem volta ao íntimo. Ali permanece por anos, buscando abrigo em si mesma. Nem sempre encontra, mas sempre procura.
Toda pessoa pobre é um canto que ninguém vê.
Ainda que, aos olhos alheios, ela se caracterize de igual —vestida da materialidade básica que faz da gente a gente, com sistema nervoso central e periférico, a pessoa pobre, enquanto canto que ninguém vê, torna-se invisível imagem incômoda. Ao não ser fotografada por retinas outras, também não é revelada ao mundo. Resta a presença, só. Sem ser vista, incomoda por ser e estar na conjugação cotidiana.
Frequentemente mirada, não é, contudo, reparada. Permanece estilhaço, impedida de se reconstituir para além do centro, para além da periferia dos sistemas que a operam e formar, mais uma vez, o retrato do povo que se vê e se sente como tal.
Povo, retrato batido do Brasil, todo dia a passar despercebido diante daqueles que odeiam essa multidão ainda muito pobre e que povo não se consideram. São os tais a viver no delírio de uma existência à parte demais quando, em muito, pobres também são, mas não há Gestalt que salve da fragmentação tal perspectiva. Uma invisível imagem incômoda que, não vista, incomoda pela simples —e inevitável— presença. A imagem escanteada do pobre.
Põe-se no caco a culpa pela pedrada. No estilhaço, a responsabilidade por trincar-se. E quem atira a primeira pedra? De quem são os olhos que, mesmo ao invisibilizar o reflexo do pobre, conseguem acertar em cheio o canto aparentemente vazio que, até então, visto não era? Os paradoxos não se escondem mais. Ao existir, ser olhada de canto e ignorada em presença, a pessoa de pobreza reconvexa —cada vez mais difícil de se ignorar mundo afora, consegue se enxergar em outros pequenos, mas reais e intensos, cantos.
Quando toda pessoa pobre se vê noutro canto que ninguém via, passa de espelho à imagem concreta. De ilusão a eu. De eu a nós. Reconhecem-se.
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A partir daí, começa a tocar ao fundo um blues antigo. Ele faz lembrar que tamanho sofrimento trazido pela pobreza não é a imagem ideal; que ninguém escolhe se projetar para o abismo achando que nele há vida digna; que a luta contínua pela sobrevivência irá colidir com a luta contínua pelo extermínio daqueles cantos de calçada ocupados por invisíveis presenças indesejáveis. Um blues que, se com música retratasse algum cheiro, seria o de creolina a expulsar de vista toda pessoa-canto.
Em todo canto há uma pessoa que é, ainda hoje, um blues antigo.