: Ney Latorraca criava no palco mundo que era só seu, diz Gerald Thomas

há 17 horas 1

As imagens são tão nítidas que a linha do tempo se confunde. A voz grossa, empostada e irônica de Ney Latorraca no meu ouvido: "Elegante! Fino! Outra coisa! Hummm". Ele se referia aos ensaios de "O Balcão", de Jean Genet, que Victor Garcia ensaiava no Teatro Ruth Escobar com um elenco marginal e engajado.

Estamos no final da década de 1960, e eu, com quase 17 anos, havia me intrometido na reta final dos ensaios por "ordens" de Hélio Oiticica e sugestão de Sérgio Mamberti. Acontece que meus olhos grudaram em Latorraca. Não me perguntem por quê. E ele em mim. "Grudei os olhos em você assim que você entrou", me dizia décadas depois.

Agora a cena é outra. Eu sou o diretor, e estamos em 1994, para ser exato. Eu o havia chamado para liderar o elenco em "Don Juan", de Otavio Frias Filho.

Numa pausa, justamente na primeira leitura, Fernanda Torres, Edi Botelho, Luiz Damasceno e até Otavio se reuniam em torno da mesa de café, enquanto Latorraca me puxava para um canto do Teatro Tuca: "A minha memória é claríssima de quando você pisou naquele recinto! Parecia que você era um personagem de Genet."

Todos se perguntavam se Victor não o havia colocado como representante da "época de militância". Calma. Vou contextualizar. Sérgio Britto me levou ao Brasil em 1985 para montar "Quatro Vezes Beckett", com Sérgio Britto, Rubens Correia e Ítalo Rossi, e "Quartett", com Tonia Carreiro, que reclamava muito de Latorraca.

"Imagina", dizia Sérgio, "em ‘Rei Lear’ ele roubava a cena todas as noites. Eu era Lear, o principal, mas Ney se jogava no centro e Celso [Nunes, o diretor] achava tudo lindo." Ironicamente, meu segundo espetáculo com Ney e Edi Botelho foi "Quartett", de Heiner Müller. Eu pensava que dois homens no papel fariam mais sentido. "Quatro Vezes Beckett" era a versão brasileira do meu "Beckett Trilogy", com Julian Beck no La MaMa.

Olha, estou escrevendo este artigo horas depois de tomar conhecimento da morte de um de meus melhores amigos; de um de meus mais fortes e brilhantes companheiros de palco. E, sinceramente, não sei se conseguirei chegar até o fim.

Latorraca era —meu Deus, estou escrevendo no tempo passado, é inacreditável. Latorraca foi meu grande amigo. Por anos a fio, 365 dias por ano, tendo espetáculo ou não, em qualquer cidade ou país. É redundante fazer ou não a lista de trabalhos: "Don Juan", "Quartett" "UnGlauber", "Entredentes". Por quê? Porque o mundo era nosso palco. Ríamos nos restaurantes em Copenhagen e em Londres ou aqui em Nova York. Fingíamos estar sérios quando atores perguntavam a ele ou a Edi "como eles chegavam a tal intensidade".

Eles emprestavam o palco onde eu montava "Chief Butterknife com um grupo dinamarquês, e nas horas vagas, ensaiávamos "Quartett" com Latorraca e Edi Botelho e os dinamarqueses ficavam na plateia de boca aberta. Viajávamos a paisana juntos e a trabalho. Vivíamos e ensaiamos no Rio de Janeiro ou em Copenhagen e em Londres e aqui em Nova York.

E agora? Puta merda, eu estou aos prantos, porra. Não se mede esse amor pela quantidade de trabalhos. Nem pelo bacalhau maravilhoso que eles preparavam na cobertura da Lagoa quando eu estava no Rio e devorava em três ou quatro garfadas só. Tudo para Ney era um tema, uma piada. Do que adianta? Não adianta.

Não se mede esse amor pela quantidade de trabalho ou disso ou daquilo. Tudo para ele era tema, piada. Do que adianta? Não adianta. Falei agora com Edi Botelho, casado com Latorraca desde 1994. Foi durante a leitura de "Don Juan" que Ney conquistou o "Didi", como nós o chamávamos. Didi foi ator da Companhia Ópera Seca desde 1987, quando chegou a São Paulo. "Do que adianta? Não adianta, Didi?", eu perguntei aos prantos em New Paltz, e Didi no hospital no Rio de Janeiro, onde Ney acabara de morrer.

Mas acho que já escrevi tudo isso. Não quero ler o que escrevi. O telefone não para de tocar. Mensagens no WhatsApp e no Instagram. Eu não paro de postar. Do que adianta? Não adianta.

Ainda estou tentando reconstruir os fatos. Não sei como expressar o amor que tenho por Ney Latorraca. Fica bem, Didi. Bem? Como assim? Claro que você não tem como ficar bem, mas me liga a hora que quiser. Te amo.

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