Para sorte de quem gosta de divulgação científica bem feita em formato de áudio, há cada vez mais opções excelentes de podcasts brasileiros nessa seara. Têm aparecido tantos, aliás, que mal tenho conseguido acompanhá-los, apesar da minha paixão pelo formato. Não faz muito tempo, consegui tirar o atraso e ouvir os oito episódios de "Os Caminhos de Niéde Guidon", apresentado pela jornalista Kelly Cristina Spinelli, e venho cá ao blog recomendá-lo vivamente ao leitor.
Durante muito tempo, a figura da arqueóloga paulista Niéde Guidon teve um status quase legendário, pelo seu trabalho combativo e (só aparentemente) solitário na serra da Capivara (PI). Ficava a impressão de que, praticamente sozinha, ela descobrira uma presença antiquíssima do ser humano no Nordeste brasileiro, chegando a 50 mil anos e até mais, e fora injustamente detonada por cientistas concorrentes de fora do Brasil, em especial dos EUA, pela ousadia.
Há vários grãos de verdade nesse retrato inicial, mas é claro que a coisa é muito mais complicada do que isso. O que os episódios de "Os Caminhos de Niéde Guidon" fazem muitíssimo bem é, em primeiro lugar, transformar a personagem-título em mulher de carne e osso (e sangue quente, e personalidade divertidamente complicada); e, em segundo lugar, colocá-la em seu contexto de amigos, colegas, concorrentes e desafetos.
O resultado é um retrato muito mais tridimensional (aliás, quadridimensional) de Guidon, a começar pelo divertido momento (pelo menos hoje, com o distanciamento histórico) de sua quase expulsão da pequena Itápolis (SP) em 1959, quando a então jovem professora de ciências foi vítima de uma espécie de caça às bruxas anticomunista popular que nada fica a dever ao que ocorreria em 1964 ou mesmo hoje, com os malucos da "Escola Sem Partido".
A narrativa também acerta ao retratar com precisão e empatia os moradores da serra da Capivara e sua relação com o projeto científico (e, mais tarde, educacional e mesmo de desenvolvimento econômico) estimulado por Guidon.
Quanto a possíveis calcanhares-de-aquiles, o resumo da controvérsia sobre as datações da presença humana da região é competente. Mas senti falta de uma análise que fosse além desse tema e detalhasse mais o contexto mais amplo das descobertas na região. É, porém, um defeito menor.
O podcast contou com o apoio do Instituto Serrapilheira.