Diante dos ataques do governo de Donald Trump à ciência e à pesquisa —que incluem cortes significativos de financiamento, demissões, veto a colaborações com organizações internacionais e perseguição a temas como mudanças climáticas e diversidade—, a Europa vem se movimentando para atrair cientistas de alto nível que atuam nos Estados Unidos.
Uma carta assinada por 12 países europeus e endereçada à Comissão Europeia pede que a entidade aja para promover um "boom de atratividade", buscando talentos "que possam sofrer com interferência em pesquisa e cortes de financiamento brutais e mal motivados".
O documento, revelado pelo jornal digital Politico, não cita abertamente os EUA, mas faz várias referências à situação americana.
"O contexto internacional atual nos lembra que a liberdade da ciência pode ser posta em risco em qualquer lugar e a qualquer momento", dizia o texto.
Muitos europeus veem agora uma janela de oportunidade para reverter, ao menos em parte, a fuga de cérebros em direção aos EUA. Durante momentos de crise no velho continente, como a Segunda Guerra Mundial e a crise financeira de 2011, instituições americanas agiram ativamente para cooptar a elite científica europeia.
Os primeiros passos foram dados pela França, onde a universidade Aix-Marseille, no Sul do país, anunciou o programa Safe Place for Science (Lugar Seguro para a Ciência), dedicado a acolher pesquisadores que se sentem ameaçados ou intimidados nos EUA.
Inicialmente, o projeto previa destinar até 15 milhões de euros (R$ 93,6 milhões) para acolher cerca de 15 cientistas. A primeira candidatura chegou horas depois de o site da iniciativa entrar no ar.
Segundo a instituição, diante do "grande número de solicitações recebidas", haverá agora uma primeira pré-seleção com base em candidaturas feitas até o fim de março.
Outras instituições francesas se juntaram ao movimento, como as universidades Paris Sciences et Lettres (PSL) e a CentraleSupélec, também direcionando esforços para acolher pesquisadores dos Estados Unidos. Em Paris, a ARC (Fundação para a Pesquisa do Câncer) anunciou um financiamento especial de 3,5 milhões de euros (R$ 21,8 milhões).
"As decisões recentes tomadas nos Estados Unidos ameaçam atividades essenciais de pesquisa na luta contra o câncer. A França deve ser um país acolhedor para esses pesquisadores que podem ser forçados a abandonar seu trabalho. A Fundação ARC está respondendo a essa emergência e assumindo suas responsabilidades, oferecendo a eles a oportunidade de continuar suas pesquisas em um ambiente estável", disse Dominique Bazy, presidente da instituição.
Mais de 350 cientistas franceses assinaram um artigo no jornal Le Monde pedindo que a França e outros países europeus acolham os pesquisadores dos EUA. "O nosso dever na Europa é reagir coletivamente e propor soluções", diz o texto, que pede também uma ampliação nas verbas e na estrutura para pesquisa.
O próprio ministro do Ensino Superior francês, Philippe Baptiste, defendeu, em uma carta a instituições de pesquisa do país, acolher "um certo número de pesquisadores americanos reconhecidos".
Na Bélgica, pelo menos duas universidades já anunciaram fundos para acolher pesquisadores atualmente nos EUA.
A Vrije Universiteit Brussel (VUB), em Bruxelas, afirmou que seu movimento é uma resposta "à alarmante interferência política na pesquisa acadêmica pelo governo Trump nos EUA".
Além de defender a liberdade científica, a instituição relembrou declarações feitas pelo presidente americano, em seu primeiro mandato, logo após a ação de homens-bomba que deixou mais de 30 mortos e 230 feridos no aeroporto da capital belga.
"Após os ataques terroristas de 22 de março de 2016, em Bruxelas, o então presidente Trump se referiu à capital belga, especificamente ao distrito de Sint-Jans-Molenbeek, como um ‘inferno’, uma observação que desencadeou fortes reações emocionais em toda a Europa. Isso torna a iniciativa da VUB ainda mais significativa simbolicamente", disse a instituição no lançamento do programa.
Na Holanda, na Espanha e em vários outros países, políticos já têm defendido abertamente ações para acolher pesquisadores dos EUA. Essencialmente, os europeus miram agora cientistas de destaque em áreas consideradas prioritárias, como inteligência artificial, ciências climáticas e pesquisa em saúde.
Ainda que líderes e cientistas europeus considerem que o momento seja extremamente favorável à atração de pesquisadores altamente qualificados, os esforços nesse sentido esbarram na limitação de recursos.
Diante do aumento das tensões geopolíticas, inclusive por causa do distanciamento de Donald Trump em relação a seus antigos parceiros europeus, a União Europeia aprovou, no começo de março, um plano para mobilizar cerca de 800 bilhões de euros (R$ 5 trilhões) em recursos para a defesa.
Para fazer frente a um aumento dos gastos militares, várias nações europeias já têm preparado cortes orçamentários em outras áreas, como assistência social e ciência.
Ainda não está claro o quanto as autoridades europeias estão dispostas a investir na atração de pesquisadores atualmente nos EUA. Tradicionalmente, as instituições americanas pagam valores bastante superiores em suas bolsas e contratos.
Os EUA investem cerca de 3,6% do PIB (Produto Interno Bruto) em pesquisa, desenvolvimento e inovação, incluindo uma forte participação do setor privado. Na UE, esses investimentos são de aproximadamente 2% do PIB, com uma fatia privada bastante inferior.
Desde que voltou à Casa Branca, Trump implementou uma série de cortes de financiamento para a ciência, incluindo instituições como a Nasa (agência espacial americana), a Noaa (Administração Nacional Oceânica e Atmosférica) e os Institutos Nacionais de Saúde.
Além da redução dos recursos financeiros e de milhares de demissões, o governo americano implementou várias medidas para reduzir a cooperação internacional, incluindo limitações à colaboração com pesquisadores da OMS (Organização Mundial da Saúde). Cientistas americanos também não puderam participar da última reunião do IPCC (o painel de especialistas do clima da ONU), no fim de fevereiro.
A administração republicana está passando um pente-fino na linguagem usada em projetos de pesquisa, eliminando termos como "ciência do clima", "diversidade" e "gênero" de documentos e solicitações de recursos públicos para projetos científicos.
Em meio a cortes de verbas e maior escrutínio, várias universidades americanas congelaram novas contratações e projetos.
Para pesquisadores estrangeiros, as ações anti-imigração do governo americano representam problemas adicionais. Nas últimas semanas, estudantes de pós-graduação com status migratório regular em solo americano foram detidos e ameaçados de deportação, supostamente por conta de posicionamentos contrários à atuação do exército de Israel na Faixa de Gaza.
Assustados com a deterioração do cenário para a ciência nos EUA, centenas de pesquisadores já se inscreveram nas oportunidades disponíveis na Europa.
A reportagem conversou com dois cientistas brasileiros, atualmente realizando pós-doutorado nos Estados Unidos, que cogitam tentar uma das vagas europeias ou mesmo retornar ao Brasil.
Temendo retaliações, eles pediram para não ser identificados, mas destacam que já sofrem com as novas medidas implementados pelo governo Trump. Atuantes na área da saúde, um artigo assinado no grupo de pesquisa que integram teve a publicação suspensa devido ao conteúdo, que envolvia menções à gênero e à diversidade étnica.