Os carros do Brasil de 1994 relembrados trinta anos depois

há 4 meses 28

Dia 1º de agosto de 1994. Nos últimos três meses, o Brasil passara da depressão pela morte de Senna à euforia pelo tetracampeonato mundial de futebol, ansiosamente desejado por 24 anos. Entre um fato e outro, uma nova moeda - o real - havia sido implantada no Brasil como mais uma promessa de domar a hiperinflação que nos atormentava.

Em meio a essa montanha russa de emoções, eu ainda tinha outra vertigem pela frente: deixar um emprego na Mesbla para ser repórter do CarroEtc, o caderno de automóveis do jornal O Globo. E foi naquela sexta-feira, 1º de agosto de 1994 (há exatamente 30 anos!), que entrei nessa vida de jornalista automotivo e nunca mais saí. Parece que foi ontem, mas o mundo sobre rodas mudou um bocado desde então.

A indústria nacional vivia uma transformação. Em 1990, o presidente Fernando Collor havia reaberto as importações (proibidas em 1976, pelo governo militar). Com isso, o brasileiro médio percebeu o quanto os automóveis nacionais estavam defasados em relação aos europeus, asiáticos e norte-americanos. A ordem era atualizar nossas “carroças”.

005 - Corsa Wind

Jason Vogel

Com o impeachment de Collor, Itamar Franco assumiu o poder e, em 1993, lançou o programa do carro popular, com redução do IPI como estímulo à indústria. O símbolo maior dessa fase foi o relançamento do Fusca, mas a demanda mesmo era por “carros mil” como o Gol 1000 “quadrado” (o “Bolinha” ainda estava para ser lançado), o Uno Mille Eletronic, o Escort Hobby 1.0 e o Corsa Wind. Isso provocou uma corrida às concessionárias.

Em agosto de 1994, o valor de um salário mínimo era de R$ 70, enquanto o Fusca e o Gol 1000 tinham seus preços tabelados em R$ 7.243. Ou seja: eram necessários 103 salários mínimos (8 anos e 7 meses) para comprar um “popular” zero-quilômetro. As taxas de financiamento giravam em torno de 4,5% ao mês.


Mesmo assim, havia tanta demanda que era preciso esperar meses nas filas de espera. Lojistas que conseguiam carros para pronta-entrega cobravam o tão falado ágio. Automóveis com pouco uso eram vendidos por valores acima da tabela oficial para os 0km. As vendas de carros de passeio e comerciais leves saltaram de 724 mil (em 1992) para 1,3 milhão (em 1994) - sendo que os “carros mil” chegaram a representar 70% do total.

Show de preconceito

Desde o início dos anos 70, carros de quatro portas eram vistos como “táxis” ou considerados um perigo para quem levava crianças no banco de trás. Com a reabertura do mercado, esse preconceito exclusivamente nacional começou a ser superado. Mesmo assim, em 1994, campeões de vendas como o Gol, a Parati e o Corsa ainda saíam somente com duas portas.

Também tínhamos preconceito contra o ar-condicionado, por aumentar o consumo de combustível e roubar potência do motor. O equipamento era opcional em versões de luxo - e não era raro que os compradores desses carros mandassem retirar a correia do compressor. Daí que o lançamento do Uno Mille ELX, em 1994, foi uma revolução: tínhamos um carro 1.0 que podia vir de fábrica com ar-condicionado!

Seu compressor Nippondenso era leve e o sistema era “inteligente”, desligando-se sozinho quando era preciso usar os 56 cavalinhos do motor em sua plenitude. A partir daí, o brasileiro perdeu de vez o medo do ar-condicionado. Muitas vezes, as próprias concessionárias recebiam os 0km sem esse item e levavam os carros para fazer a instalação em lojas independentes. Já os automóveis com “ar de fábrica” passaram a ser valorizados na hora da revenda.

Mille ELX, o primeiro popular com ar-condicionado

Mille ELX, o primeiro popular com ar-condicionado

O Gol GTi fora lançado em 1989, mas muita gente em 1994 ainda tinha medo de injeção eletrônica - como um sistema tão sofisticado e moderno iria resistir ao sacolejo de  nossas estradas esburacadas e à gasolina misturada com álcool? Qualquer mecânico sabia consertar um carburador, mas o que fazer se a injeção desse pane?

A grande novidade era a injeção multiponto, mais evoluída que a “single point”. Muitos carros, contudo, ainda traziam o carburador eletrônico (cheio de válvulas, mangueiras, sensores e solenóides), que dispensava o afogador manual e ajustava a lenta automaticamente. Já existiam preocupações ambientais e uma novidade para os brasileiros era o catalisador, usado lá fora desde os anos 70. Havia quem o trocasse por um cano reto, para “deixar o escape mais livre” e “ganhar potência”.

Tínhamos muitos modelos nacionais com câmbio automático, mas esse tipo de transmissão também era visto com desconfiança pelos brasileiros. Era comum ouvir afirmações do tipo: “Prefiro o câmbio manual para ter o carro sob meu controle!” ou “Quando enguiça, o carro automático não pega no tranco”. E, claro, havia o temor do aumento no consumo.

Por meio das importações, os carros com quatro válvulas por cilindro estavam chegando ao Brasil. Traziam consigo o estigma de ter pouca força em baixas rotações. Por causa disso, muitos ainda preferiam os cabeçotes tradicionais, com duas válvulas por cilindro.

Desde 1970, uma lei exigia que todos os carros nacionais viessem de fábrica com cintos de segurança, mas raríssimos eram os motoristas ou passageiros que utilizavam o equipamento. O senso comum da época era: “Se o carro cair em um rio e eu ficar preso pelo cinto, vou morrer afogado!”. Havia até bolsinhas para guardar cintos não-retráteis bem enrolados, evitando que ficassem pelo caminho. Somente com a entrada em vigor do novo Código de Trânsito Brasileiro, em 1998, é que o uso do cinto se disseminou pelo Brasil.

008 - Ford Versailles

Jason Vogel

Ford Versailles

As quatro grandes

Havia quatro grandes fabricantes de automóveis no Brasil: Volkswagen, General Motors, Ford e Fiat. A marca italiana foi a última a chegar (1976) e só no começo dos anos 90 começou a vencer o preconceito dos brasileiros. As vendas do Uno, que patinavam desde 1984, decolaram com o lançamento da versão Mille, em 1990.

Muitos, porém, ainda temiam os Fiat por causa do comando acionado por correia dentada de borracha: se esta arrebentasse, as válvulas do motor Fiasa acabavam empenadas. Na época, também se dizia que os Fiat não conseguiam superar trechos alagados. Os carros da marca tinham uma imagem de fragilidade, em curioso contraste com a fama de topa-tudo que o velho Uno tem hoje em dia.

A Ford sofria como o patinho feio da Autolatina (1987-1996), uma infeliz associação com a Volkswagen. Eram tempos de Gol com motor CHT e Escort com motor AP. Os clientes mais fiéis do oval azul jamais se conformaram em ver seus econômicos Del Rey e Belina ganharem a mecânica da antiga concorrente. A união gerou modelos como os Ford Versailles e Royale, ou os VW Logus e Pointer, todos frutos bastardos do badge engineering.

A Toyota estava estabelecida em nosso mercado desde a década de 50 mas, conservadora que só ela, produzia aqui apenas os jipes e picapes Bandeirante. O Corolla já era vendido em 167 países quando, enfim, estreou timidamente no Brasil, importado do Japão.

Chevrolet Lumina

Jason Vogel

Chevrolet Lumina

Febre dos importados

Nossa moeda finalmente era forte. Quando foi lançado, em 1º de julho de 1994, o real valia mais que o dólar: bastavam R$ 0,83 para comprar US$ 1. Isso estimulou ainda mais as vendas de carros importados.

Na época, quem liderava a indústria era o Japão (com 11 milhões de automóveis) e os EUA (com 10 milhões). Nem nos sonhos mais delirantes seria possível prever que a China um dia seria a maior produtora de automóveis do planeta, fabricando 30 milhões de carros por ano.

Em 1994, a desconfiança dos brasileiros era em relação aos carros da Coreia do Sul. E estes modelos, realmente, ainda tinham muito que evoluir em acabamento e estilo: em 1996, fiz um teste comparativo do Hyundai Accent com o Corsa Sedan em que o compacto asiático levou uma surra do nacional. A Daewoo vendia aqui o Espero, uma espécie de Monza sul-coreano que fez um breve sucesso entre nós. Mas as estrelas de fato foram a Kia (com a Besta) e a Asia (com a Towner e a Topic), que mostraram ao nosso mercado que existiam minivans comerciais bem mais modernas que a Kombi.

Kia Besta

Jason Vogel

Kia Besta

Honda, Peugeot, Renault, Nissan… todas só vendiam aqui carros importados. Ainda existiam Citroën “de verdade”, com a suspensão hidropneumática Hydractive nos modelos XM e Xantia. No Brasil, a francesa tinha um glamour de marca de luxo.

Sonho mesmo era ter um BMW Série 3 (geração E36), tanto que chegava aqui via importação oficial, da Alemanha, ou paralela, via Miami. Apesar do preço alto (US$ 64.300 na versão 325i manual) tornou-se uma visão comum nas ruas do Rio e de São Paulo, a ponto de ser chamado de “Fuscão de rico”.

Os craques que despontavam no futebol compravam logo um Mitsubishi Eclipse GS Turbo, por US$ 44.800 - e foi em um carro desses que o meio-campista Dener, recém-emprestado ao Vasco da Gama, morreu num acidente em 1994, enquanto dormia no banco do carona. Entre os 4x4, os modelos mais badalados eram o Mitsubishi Pajero e o Nissan Pathfinder. Quem tinha família grande, aproveitava o dólar barato para ir à Disney e voltava da Flórida louco para comprar uma minivan Chevrolet Lumina.

Apesar das taxas de importação, alguns carros estrangeiros competiam em preços com os nacionais. O italiano Fiat Tipo foi um ícone desse período, com ótimas vendas entre 1993 e 1996. Quando passou a ser produzido em Betim e caminhava para uma vida longa em nosso mercado, uma série de incêndios causados por vazamentos de fluido de direção hidráulica sobre o coletor de escape quente, literalmente, queimou sua imagem. Ao menos, o modelo ficou com o mérito de ter sido o primeiro carro nacional com airbag (opcional).

Gol 1000

Jason Vogel

Gol 1000

Equipamentos

Até o retrovisor externo direito era opcional em nacionais como o Gol CL. Vistos como luxo, itens como direção hidráulica ou travas e vidros com acionamento elétrico muitas vezes eram pagos à parte, e somente para as versões topo de gama. A “multimídia” se reduzia ao rádio AM-FM original. Quem quisesse um som melhorzinho podia instalar um toca-fitas (de bandeja, para evitar roubos) ou, se fosse rico o suficiente, um CD-Player com carrossel no porta-malas.

As concessionárias ainda eram modestas empresas familiares se comparadas aos grandes grupos de hoje. Tinham que ser fiéis à bandeira, trabalhando com apenas uma marca. Para atrair clientes, ofereciam itens diferenciados, como colocação de couro nos bancos.

Não havia a internet como infinita fonte de informação. Somente com a chegada dos importados é que o brasileiro leigo em automóveis passou a falar em ABS, airbags, controle de som no volante, 16 válvulas, câmbio tiptronic ou barras de proteção nas portas.

Envemo Camper

Jason Vogel

Envemo Camper

O mundo antes dos SUVs urbanos

Ainda faltavam nove anos para a Ford revolucionar o mercado com seu pequeno SUV urbano, o EcoSport. O mais próximo que se tinha de um utilitário esportivo nacional, em 1994, era a Chevrolet Bonanza, uma espécie de Veraneio duas portas. Havia ainda a Envemo Camper, réplica não-autorizada da Cherokee XJ. Eike Batista tentava a sorte no mundo fora-de-estrada produzindo o JPX Montez, uma versão brasileira do obscuro jipe Auverland francês. 

Em compensação, não faltavam station wagons: quase todo sedã tinha sua versão familiar.  A VW tinha a Quantum e a Parati, a Fiat fazia a Elba e estava para lançar a italiana Tempra SW com seu painel digital ultramoderno. A Ford já havia aposentado a Belina mas tinha a Royale. Por fim, a GM tinha a Ipanema e, luxo dos luxos: a Suprema.

Chevrolet Suprema CD

Jason Vogel

Chevrolet Suprema CD

Falando nisso, os Chevrolet Omega CD 3.0i (R$ 46.739) e a Suprema CD 3.0i (R$ 48.076), com seu motorzão Opel de seis cilindros em linha e 165 cv, eram os nacionais mais caros e avançados que tínhamos na época, equiparando-se dinamicamente aos BMW 3 e Mercedes C. Aceleravam de 0 a 100 km/h em menos de 10,5s e alcançavam 210 km/h.

Turbo, em 1994, era sinônimo de esportivo, e a pioneira Fiat tinha dois modelos com o equipamento: o Tempra Turbo (165 cv, com 0 a 100 km/h em 8,2s e máxima de 212 km/h) e o Uno Turbo ie (118 cv, com 0 a 100 km/h em 8,9s e máxima de 192 km/h). Eram os carros mais ardidos da época, juntamente com o aspirado Vectra GSi (150 cv, com 0 a 100 km/h em 9,2s e máxima de 207 km/h). Os dias de glória do Gol GTi já haviam ficado para trás.

Tínhamos ainda os conversíveis nacionais, Escort XR3 e Kadett GSi, ambos caríssimos e prestes a ceder seu status de sonhos de consumo aos importados.

Carro híbrido… o que é isso?

O Brasil ainda fabricava carros movidos a álcool em 1994, mas ninguém queria comprá-los desde que os usineiros decidiram produzir mais açúcar do que etanol, provocando uma crise de desabastecimento. Somente uma década depois, com o lançamento dos motores flex, é que o combustível derivado da cana voltaria a ter uma chance.

As crises do petróleo haviam ficado para trás, e a escassez de gasolina deixara de ser uma ameaça constante. GNV? Nenhum motorista brasileiro sabia o que era isso.

Carros elétricos eram vistos como uma previsão dos anos 70 que jamais se tornaria viável. Suas baterias eram pesadas demais, a autonomia mal chegava a 100 km, o desempenho era risível e todos os protótipos tinham aparência esquisitinha. Nos Estados Unidos, contudo, a General Motors dava início a um programa que resultaria na produção experimental de 1.117 unidades do modelo elétrico EV1, entre 1997 e 1999. Mais tarde, esses carros seriam recolhidos e destruídos pela fabricante.

Também não se falava em híbridos. Só em 1995 a Toyota apresentaria o Prius concept car, usando o revolucionário sistema que combinava um motor elétrico a outro a combustão. Por muitos e muitos anos, a fabricante japonesa perderia dinheiro a cada exemplar vendido, até conseguir tornar seus híbridos economicamente viáveis.

Saudosismo?

Um salto de 30 anos no tempo e vemos o tanto que os automóveis evoluíram em conforto, potência e recursos eletrônicos. Mas também sentimos saudades da época em que os carros eram mais leves, e o foco das atenções era voltado para motor, câmbio, suspensão e direção. Hoje, a disputa é pelo maior SUV, que oferece os melhores ADAS, a tela multimídia mais deslumbrante e a bateria com maior capacidade. Aqueles engenheiros que buscavam uma prazerosa relação homem-máquina deram lugar a programadores de games.

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