Opinião - Suzana Herculano-Houzel: 'Adolescência' dá tempo para pensar

há 3 dias 3

Pelo tanto que li em críticas e comentários de leitores, eu esperava que a incitação de jovens ao ódio e ao crime pelas redes sociais fosse ocupar o lugar central na série "Adolescência', da Netflix, que trata de um menino de 13 anos que é acusado de matar uma colega de escola.

Francamente, me deu preguiça. As consequências negativas da antissocialidade pregada e disseminada por plataformas na internet há muito deixou de ser novidade. Mais uma série sobre violência fomentada por mídias "sociais"? Não, obrigada.

O que vem a seguir não é spoiler. Já sabemos desde o começo, pelos anúncios da série, que o adolescente matou a colega. Já entendemos, pelo barulho na mídia do mundo real, que parte da "culpa" está nas redes que ensinam misoginia, em particular, e violência, em geral, contra quem quer que seja o inconveniente da vez. E já esperamos que a série vá acompanhar a dor e a angústia dos pais que tentam entender onde tudo deu errado.

Mas isso não foi nem de longe o que a Neurocientista de Plantão viu acontecer na série.

Resolvi assistir porque uma crítica mencionou que os quatro episódios de "Adolescência" eram planos sequência de uma hora cada um. Posterguei o quanto pude, mas acabei assistindo a todos os quatro entre os voos e conexões de uma viagem a trabalho —e de uma vez só.

Em cada um dos quatro plano sequências ininterruptos, a câmera não hesita em passar um minuto inteiro, ou mais, focada no rosto do jovem preso sendo conduzido de casa para a delegacia, quase sem diálogo; focada no rosto do policial que pondera em silêncio o que acabou de descobrir da boca de outro adolescente; encarando a psicóloga que vivencia na pele a personalidade do garoto e sai da sala para se recompor; seguindo o pai, alterado, que tenta digerir o que está acontecendo.

O recurso é desconfortável, e o resultado é sensacional. O plano sequência logo de cara avisa que não haverá trégua, corte rápido, passagem de tempo que sirva de alívio ao telespectador. Pela primeira vez, que eu me lembre, vi a televisão para consumo forçar o público a pensar –e o que força a reflexão não é o bullying via Instagram de que a mídia tanto fala, para mim um pequeno coadjuvante na série.

Não. A estrela da série é o tempo de reflexão que ela força goela abaixo ao espectador, e repetidamente ao longo de cada episódio. Qualquer ímpeto de pegar o celular para conferir rapidinho as novas curtidas no próprio Instagram enquanto o garoto, o policial, a psicóloga ou o pai estão sofrendo a vida na tela é reprimido pelo risco de perder a próxima ação, pois o passo do tempo na tela é o mesmo da vida real, inexorável e imprevisível.

Não há alternativa a não ser pensar no que se vê, colocar-se no lugar do personagem da vez na tela, sentir e avaliar tanto a situação quanto os sentimentos, os dos outros e os próprios.

Pensar, que é ação mental cujos resultados ninguém vê imediatamente, requer tempo e oportunidade. Os planos sequência da "Adolescência" que acompanham as reflexões silenciosas dos personagens dão ao espectador oportunidades ímpares para existir e pensar na própria existência, oportunidades que as plataformas de fast-food mental onipresentes tiraram do nosso cotidiano.

Meu avô não precisava que Netflix algum lhe desse oportunidade para parar e pensar. Ele colocava uma cadeira de praia na calçada, ao fim do dia, e se sentava para ver a vida passar.

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