Opinião - Marcelo Viana: Paradoxo de Russel: a maçã no paraíso de Cantor

há 5 dias 3

"Do paraíso que Cantor para nós criou, ninguém poderá nos expulsar", dizia o matemático alemão David Hilbert (1862–1943).

De fato, a teoria dos conjuntos do seu compatriota Georg Cantor (1845–1918) apontava o caminho para formular toda a matemática de modo rigoroso a partir de um pequeno número de ideias fundamentais, ao mesmo tempo em que lançava uma nova luz sobre o misterioso conceito de infinito.

Mas o éden de Cantor vinha com suas maçãs envenenadas: contradições lógicas e uma dificuldade surpreendente para entender até o que é um conjunto. E quando, em 1901, o inglês Bertrand Russel (1872–1970) formulou o seu famoso paradoxo, muita gente deve ter sentido que as fundações da matemática estavam rachando.

Russel observou que os conjuntos mais habituais não são membros de si mesmos. Por exemplo: o conjunto C de todas as colheres não é uma colher, evidentemente, portanto não é membro de si mesmo. Mas agora pense no conjunto N de todas as coisas que não são colheres. Eu sou um membro desse conjunto, já que não sou uma colher, e o próprio conjunto também é, pela mesma razão. N é membro de si mesmo...

Russel propôs então considerar o conjunto R formado por todos os conjuntos que não são membros de si mesmos e apenas esses. Por exemplo, o conjunto C das colheres é membro de R, enquanto o conjunto N das "não colheres" não é. E o próprio R, é membro de si mesmo? O problema é que se R for membro de si mesmo, então, pela definição, ele não é membro de si mesmo. E se R não for membro de si mesmo, então, novamente pela definição, é porque ele é membro de si mesmo. Não tem escapatória!

As leitoras e leitores que acompanham esta coluna há anos perceberam que se trata de uma versão sofisticada do velho paradoxo do cretense mentiroso que afirma "Estou mentindo". Se está realmente mentindo, então essa frase é verdadeira, ou seja, ele está falando a verdade. E se está falando a verdade, então é porque realmente está mentindo. Em qualquer dos casos, chegamos a uma contradição.

Mas enquanto o paradoxo do cretense parecia uma curiosidade inofensiva, apropriada para impressionar amigos e conhecidos nas melhores ocasiões sociais, o paradoxo de Russel tinha consequências importantes para o edifício lógico da matemática. No coração da teoria que deveria organizar toda a disciplina de forma rigorosa, aninhava-se a serpente da contradição...

Nem todo mundo ficou terrivelmente abalado. O francês Henri Poincaré (1854–1912), que já deixara claro antes que considerava a lógica um assunto estéril, não resistiu a zoar: "Agora ela não é (meramente) estéril, ela gera contradições". Para ele, a luz condutora da matemática reside na intuição, não na lógica.

Nisso, ele não poderia ser mais diferente de Russel, para quem a matemática consiste apenas de afirmações abstratas do tipo "se P é verdade, então Q é verdade", em que não importa o que P e Q significam, nem se são verdadeiras. "Matemática é aquele assunto em que nunca sabemos do que estamos falando, nem se o que estamos dizendo é verdade", resumia de forma provocadora.

Nos anos seguintes, os dois homens travaram um debate de ideias, tão respeitoso quanto assertivo.

Comentarei na semana que vem.

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