Nove anos após Zika, crianças sofrem redução de tratamentos

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Por volta das cinco da manhã, Vera Silva terminou de organizar a filha, Sophia Valentina, para ir ao Recife. São cerca de 60 quilômetros entre Escada, onde vivem, e a capital pernambucana. Esse caminho é repetido há oito anos, desde que Sophia foi diagnosticada com síndrome congênita do zika. Ao sair de casa, a família levou consigo a esperança.

O destino era a sede da AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente), onde Sophia faria uma revisão da cirurgia de quadril que realizou 2023. A expectativa é saber quando será o próximo procedimento, adiado desde maio por falta de material cirúrgico.

"Chegaram para mim hoje e disseram: ‘Não há mais o que fazer com ela. Sem a cirurgia, ela não se enquadra aqui, pois não evolui.' Isso, para mim, doeu", lamenta Silva, que voltou oito horas depois para casa com frustração e cansaço.

Agosto de 2024 marcará nove anos que os primeiros casos de síndrome congênita do zika começaram a ser notificados no Brasil. Sem os mesmos investimentos e atenção do passado, as famílias das crianças atingidas pela microcefalia enfrentam dificuldade para garantir terapias e realização de cirurgias para os filhos. Os centros de atendimento reduziram a carga horária de atividades, e há 139 crianças esperando para realizar operações apenas em Pernambuco, que notificou os primeiros casos em 2015.

"Toda aquela midiatização, a emergência de saúde, não serviu. O acesso a terapias tem sido a coisa mais difícil do mundo, principalmente depois que os casos de TEA (transtorno do espectro autista) e outros transtornos começaram a crescer", comenta Germana Soares, presidente estadual da UMA (União de Mães de Anjo) e vice-presidente da UniZika Brasil, organização que representa 1.500 crianças com a síndrome em todo o país.

Quando a rede de saúde começou a ser estruturada para atender aos bebês com a síndrome, a AACD e a FAV (Fundação Altino Ventura) absorveram a demanda das crianças por terapias e tratamentos em Pernambuco. Isso não ocorre mais, segundo a UMA. Na AACD há apenas acesso a órteses e cadeiras de roda. Mesmo assim, pode haver atrasos na entrega. "Eu aguardava a cadeira de rodas do meu filho desde 2018. A gente só veio receber o material em outubro do ano passado", conta Soares.

No caso dela, isso significou precisar encontrar sozinha soluções para realizar o deslocamento do filho Guilherme, com oito anos e 51 quilos, "mas há crianças sem atendimentos básicos, como de um neuropediatra". Atualmente, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei n° 6064, que prevê indenização por dano moral e concessão de pensão especial às crianças.

Para Soares, não ter indenização até hoje é uma irresponsabilidade do Estado brasileiro: "Existe falta de respeito maior do que provocar uma demanda eterna, cruzar o teu caminho, cruzar o caminho da tua mãe, da sua família inteira, te limitar, afundar teus sonhos, teus planos, mudar teu destino e nem sequer te indenizar, te prover uma assistência digna, uma assistência básica digna, uma qualidade de vida?"

Cirurgias adiadas e terapias canceladas

A maior demanda das crianças com a síndrome do zika é de cirurgias de quadril, para corrigir luxações e escolioses. De acordo Soares, três crianças já morreram esperando o procedimento, outras 139 estão aguardando. Em maio, uma audiência pública foi realizada na Assembleia Legislativa de Pernambuco, onde tramita o Projeto de Lei 1799/2024, propondo um prazo de 45 dias entre as consultas médicas e as intervenções cirúrgicas ortopédicas.

Na ocasião, o ortopedista Epitácio Rolim ressaltou que essas cirurgias foram requisitadas desde 2017, mas não foram realizadas deixando os quadris das crianças deformados. "Mas, mesmo que não possamos modificar isso, é urgente tirar a dor que sentem e dar qualidade de vida a elas", disse o médico no plenário. Para Soares, há uma falta de priorização do governo. "O nosso medo é de que a gente continue perdendo mais crianças pela falta de uma cirurgia que é ofertada no SUS."

No caso de Sophia Valentina, o outro procedimento, dessa vez do lado esquerdo, deveria ter sido feito em junho, mas não havia material disponível. "Hoje minha filha chora dia e noite, com bastante dor, tem crise, já não dorme direito. É muito dolorosa essa situação", lamenta Vera Lúcia da Silva.

Há dificuldades também no acesso a outros serviços, como fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional. "No auge, todo mundo queria tratar as nossas crianças, mas hoje é diferente. A gente precisa sair de um município a outro, para ver onde terá vaga disponível." Segundo ela, Sophia foi retirada de quase todas as terapias que realizava na FAV, no Recife.

O mesmo aconteceu com Graziella Tavares, de oito anos, que tinha atendimentos de fonoaudiologia, fisioterapia e fisioterapia aquática uma vez por semana na FAV, mas passou a ter assistência a cada 15 dias. "Minha filha tem muitos internamentos, muitas crises convulsivas, então eu acabo tendo que fazer as terapias em casa, sozinha, senão ela ficará ainda mais comprometida", relata a mãe, Inabela Souza, de 39 anos.

Graziella espera há dois anos por atendimento de um dentista especializado no Recife. "Minha filha não estava conseguindo mastigar, o dente estava nascendo, a gengiva ficando inchada, então ficou com desnutrição grave por não conseguir comer", conta Souza, acrescentando que os equipamentos disponíveis hoje na rede não estão adaptados ao tamanho das crianças. "Passei a dormir com ela todo dia, com medo de que algo pior aconteça."

O filho da artesã Jaqueline Vieira, de 33 anos, tampouco tem conseguido acesso às terapias que necessita. Daniel, de oito anos, precisaria de terapia ocupacional e fisioterapia respiratória, mas só tem acesso a fisioterapia motora e fonoaudiológica. "A assistência é muito precária. Antes era muito interesse, muita pesquisa, hoje em dia eles saem cortando tudo, desligando as nossas crianças, dizem que é a idade de parar. A gente está esquecida."

De acordo com a AACD, em 2015 a entidade chegou a receber 211 pacientes com a síndrome para reabilitação. "Por apresentarem lesão no sistema nervoso central, ocasionando uma disfunção motora, foram enquadrados na clínica de paralisia cerebral, uma de nossas linhas de cuidado", afirma a gerente da AACD Recife, Luciana Martins. Segundo a organização, todas essas crianças seguem em acompanhamento com consultas médicas, para reavaliação de quadros motores e recebimento de órteses.

Em nota, a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco afirmou que tem realizado a avaliação dos serviços prestados nos centros de reabilitação para otimizar o acesso dos pacientes, além de estar realizando mutirões de exames e consultas para avaliar as crianças com indicação de cirurgias de quadril. Foi ampliada a oferta de consultas num ambulatório de escoliose, além do acesso à aplicação de toxina botulínica. A partir do segundo semestre, mais três unidades de saúde passarão a realizar as cirurgias de quadril. O estado acompanha 397 crianças diagnosticadas com a síndrome.

A Prefeitura do Recife afirmou que realiza acompanhamento nutricional a cada três meses e de gastroenterologia a cada seis meses com as crianças. Em 2023, foi instituído o Protocolo Municipal de Assistência às Crianças com Síndrome Congênita do Zika Vírus, destinado aos 73 menores acompanhados na cidade. "Quanto à saúde bucal, esse atendimento faz parte da integralidade do cuidado e deve ser inicialmente realizado na Unidade de Saúde da Família. Se necessário, as crianças são encaminhadas para os Centros de Especialidades Odontológicas", diz a prefeitura em nota. A FAV não respondeu até a publicação dessa reportagem.

Sombra do zika volta diante de casos de oropouche

A identificação do vírus da febre oropouche em dois fetos mortos em Pernambuco, um indício de que é possível a doença ser passada da gestante para os bebês, trouxe de volta a sombra das consequências do zika vírus para os serviços de saúde estaduais. Pernambuco reforçou a vigilância para tentar identificar casos precocemente e evitar repetir o ocorrido nove anos atrás.

"A gente entrou em estado de alerta, pois temos esse antecedente", afirma o secretário executivo de Vigilância em Saúde e Atenção Primária da Secretaria de Saúde de Pernambuco, Bruno Ishigami. Segundo o Ministério da Saúde, estão em investigação seis casos de transmissão vertical (de mãe para filho): três em Pernambuco, um na Bahia e dois no Acre. "Dois casos evoluíram para óbito fetal, houve um aborto espontâneo e três casos apresentaram anomalias congênitas, como a microcefalia."

Para Ishigami, a experiência com o zika vírus faz Pernambuco considerar que "existe uma possibilidade real de se repetir o que aconteceu no passado". Por isso, o estado recomendou a notificação imediata dos óbitos fetais cujas mães apresentaram sintomas de arboviroses e iniciou um levantamento retrospectivo de todos os casos ocorridos desde 2017.

"A identificação dos casos em gestante indica um potencial de dano à sociedade como foi com o zika, então isso nos sensibiliza. Entendemos que é hora de protegermos as nossas gestantes, para reduzir o impacto do que venha a acontecer nas próximas semanas", afirmou o secretário.

O estado está criando um comitê que começará a operar na última semana de julho, envolvendo pesquisadores dos mosquitos vetores de doenças, e acadêmicos e profissionais de saúde que realizaram pesquisas associadas ao zika vírus.

"A gente sofreu com o zika e acompanhamos as consequências até hoje. Entendemos como a vida das famílias, principalmente das mães, e das crianças foi impactada. Há mulheres que precisaram parar de trabalhar, outras que precisam se deslocar do interior para o Recife em busca de atendimento", ressalta Ishigami.

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