No álbum "Acariciando", a cantora Ilana Volcov e o pianista Cristóvão Bastos resumem o Brasil numa casca de noz. O repertório tem samba, choro, maxixe, valsa brasileira e moda de viola. Tem as harmonias modernistas de Vadico, o pianista parceiro de Noel Rosa, e as harmonias de vanguarda de Guinga, o violonista carioca que mistura o balanço de sua Madureira natal com dissonâncias da música erudita contemporânea. E tem, claro, Tom Jobim, o centro do cânone da música brasileira.
Dentro da casca de noz está o piano de Cristóvão Bastos, um dos instrumentistas favoritos dos grandes nomes da MPB —o suingue de sua mão esquerda dispensa uma seção de percussão, enquanto a direita evoca a flauta e o clarinete de um grupo de chorinho. E a voz de Ilana Volcov, que usa o acompanhamento como um cenário que abriga os personagens das canções.
"O que une as músicas do álbum é que todas têm algo de fantástico ou sobrenatural nas letras", diz Volcov, responsável pela escolha do repertório. "Queria que ‘Acariciando’ falasse de coisas que só são possíveis no mundo da imaginação."
A valsa "Ária de Opereta", de Guinga e Aldir Blanc, por exemplo, fala de um casal que fantasia viver personagens de ópera —Peri e Ceci, Gilda e Rigoletto, Traviata e Trovador. Em "Viola de Cigano", a protagonista da canção, uma morena de olhos verdes do sertão brasileiro, vive um alumbramento ao ouvir a música de um violeiro.
Em "Saudade Intrusa", de Vadico, a ausência da amada se torna uma espécie de doença do coração. E o primeiro videoclipe do álbum, disponível no YouTube, retrata as mutações da personagem "Odalisca" — outra parceria de Guinga e Aldir Blanc – com uma animação de tons impressionistas.
Entre as melhores interpretações está a releitura de "Estrada Branca", uma daquelas músicas em que Tom Jobim evoca toda uma gama de sentimentos em um quebra-cabeças de cerca de trinta acordes. A mesma melodia mereceu uma letra triste e depressiva, de Vinícius de Moraes, e outra alegre e saltitante, de Gene Lees —o autor de várias versões de letras de Jobim para o inglês. Volcov e Bastos adotam o tom melancólico do poema de Vinícius, que desemboca num belo final em pianíssimo.
Ilana Volcov conhece Cristóvão Bastos há quase duas décadas. A amizade de ambos, ela em São Paulo, ele no Rio de Janeiro, alimentou-se de uma longa troca de impressões sobre músicas por telefone, e-mail e almoços esporádicos em restaurantes veganos. Quando a cantora se mudou para Lisboa, há sete anos, a amizade remota seguiu. O álbum "Acariciando" —nome de um choro do clarinetista Abel Ferreira— nasceu, assim, por WhatsApp.
Volcov e Bastos tiveram apenas três dias juntos, na cidade do Porto, no norte de Portugal, para gravar as músicas. "Estávamos conversando há muito tempo sobre o disco, e assim a música fluiu naturalmente, como uma continuação do diálogo", diz Bastos.
O clima de improviso e espontaneidade perpassa o álbum, dentro de um contexto em que ambos tinham um histórico de convivência com as músicas. Bastos já havia tocado "Uma Canção Inédita" no álbum dedicado ao espetáculo de dança "Cambaio", junto com os autores Edu Lobo e Chico Buarque. Volcov interpreta músicas de Guinga há muito tempo e fez shows em dueto com o compositor carioca.
Bastos acredita que o resumo do Brasil que transparece em "Acariciando" pode encontrar ouvintes no mundo inteiro, garantindo ao álbum uma carreira internacional. "Atualmente as coisas brasileiras são mais viáveis fora do Brasil. O mercado em nosso país está muito dominado por estilos como o sertanejo ou o funk", diz o pianista.
O fato de a cantora morar em Portugal pode facilitar os shows europeus da dupla. "Ainda não temos nada planejado, toda a energia até agora foi para gravar ‘Acariciando’", diz Volcov. "Um álbum, no entanto, é sempre o começo de algo, e agora vamos ver onde este irá nos levar."