A linhagem que levou à origem dos humanos modernos teve como ancestral não uma única população, mas pelo menos duas. É o que mostra um novo estudo de pesquisadores da Universidade de Cambridge, publicado no último dia 18 na revista especializada Nature Genetics (do grupo Nature).
Utilizando dois modelos de estimativa de mistura genética com base no genoma humano, foi possível encontrar sinais da mistura de dois grupos populacionais derivados de um ancestral comum no material genético dos seres humanos atuais.
O estudo usou dados do Projeto 1000 Genomas, uma iniciativa global que sequenciou o DNA de diversas populações da África, Ásia, Europa e Américas e incluiu-os em um modelo computacional criado pelos pesquisadores chamado cobraa, que analisa a distribuição de diferentes mutações no genoma e o seu papel na evolução humana.
De acordo com a pesquisa, liderada por Trevor Cousins, doutorando do departamento de genética de Cambridge, duas populações ancestrais de hominídeos saíram da África há pelo menos 1,5 milhão de anos. Mas, em algum momento há pelo menos 300 mil anos, essas populações se encontraram, se cruzaram e deram, então, origem ao humano moderno (Homo sapiens), que conquistou todo o globo e é, atualmente, a única espécie sobrevivente do gênero Homo.
Tais resultados mostram, ainda, que a proporção encontrada de mistura foi de 80/20%, isto é, uma das populações contribuiu muito mais no genoma do homem moderno do que a outra, que sofreu um processo conhecido como "bottleneck" (ou efeito gargalo, quando a presença dos genes de uma determinada população na geração seguinte é reduzida, levando à extinção ou substituição daquela população por outra).
Segundo Cousins, o cobraa avalia se a variação genética no DNA humano é mais bem explicada a partir de um modelo com mistura ou não de ancestrais. "Apresentamos evidências de que todos os humanos modernos descendem de duas populações —que chamamos de A e B— que divergiram entre si há 1,5 milhão de anos e se misturaram há 300 mil anos. Não sabemos, no entanto, se A e B correspondem a espécies identificadas por meio de fósseis", disse ele à Folha, em entrevista por email.
Esse ponto é crucial, pois é sabido, hoje, que todos nós descendemos de uma população que teve encontros esporádicos com os neandertais (Homo neanderthalensis) e outras espécies de Homo, como o homem de Denisova (Homo denisovensis), há pelo menos 50 mil anos, ou seja, muito depois de as duas populações A e B terem se cruzado. Além disso, os traços deixados no DNA desse ancestral desconhecido são na ordem de grandeza pelo menos dez vezes maior do que das outras espécies conhecidas.
"Se você é de ascendência europeia, estima-se que 2% do seu genoma venha dos neandertais. Nosso artigo sugere que todos os humanos modernos têm 20% de seu genoma da população B. Em minha opinião, podemos dizer que a história evolutiva recente ‘obscureceu’ uma história evolutiva muito mais antiga", afirma.
O modelo também foi aplicado aos dados obtidos do projeto HGDP (sigla para Projeto da Diversidade do Genoma Humano, em inglês), criado por cientistas da Universidade de Stanford e que inclui material genético de mais de mil indivíduos de 52 populações globais. Os autores obtiveram o mesmo resultado, fortalecendo a evidência de uma mistura populacional há cerca de 300 mil anos.
De acordo com os autores, não é possível saber quem seriam os ancestrais humanos, uma vez que a análise com DNA não permite esse tipo de observação, mas espécies fósseis que habitaram o continente africano, como Homo erectus (que existiu há 1,9 milhões de anos) e H. heidelbergensis (entre 600 mil e 200 mil anos atrás), podem dar pistas.
"Associar as populações A e B a fósseis conhecidos não é um trabalho para geneticistas, mas sim para nossos colegas arqueólogos e antropólogos. Existem muitas questões ainda não resolvidas e que gostaríamos de entender como, por exemplo, qual era o local de habitat das duas populações e da sua população ancestral", diz.
Uma expectativa dos cientistas é que, no futuro, outros grupos possam utilizar o modelo para analisar cenários distintos de mistura e isolamento, contemplando as diferentes hipóteses em curso até então sobre evolução humana. "Também temos um palpite que a população A é ancestral de neandertais e denisovanos, mas faltam ainda dados para corroborar isso —uma questão ainda em aberto seria saber se houve alguma mistura de genes dessas espécies na população B também", afirma.
Para Cousins, além dos estudos com genética e evolução humana, o modelo pode ser utilizado em outras espécies para ajudar na compreensão da diversificação animal. "O que está se tornando claro é que a ideia de espécies evoluindo em linhagens únicas é muito simplista. O cruzamento e a troca genética provavelmente desempenharam um papel importante no surgimento de novas espécies ao longo da história da vida na Terra."