O governo Lula (PT) tem de tomar atitudes para sanar a crise no IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), afirma Roberto Olinto, ex-presidente do órgão.
A turbulência ficou ainda mais exposta neste mês, após quatro diretores entregarem seus cargos. Divergências com a gestão do presidente Marcio Pochmann, indicado por Lula, teriam pesado na decisão dos técnicos.
"No meu ponto de vista, o governo tem de se conscientizar de que está lidando com uma crise enorme no principal produtor de estatísticas oficiais do país e tem de tomar atitudes em relação a isso", diz Olinto em entrevista à Folha.
"Não sou eu quem vai dizer [quais medidas], parte do governo, dos ministros envolvidos no IBGE, a análise da situação", acrescenta.
O pesquisador chama de "belicosa" a postura da gestão Pochmann e, a exemplo de servidores, tem uma visão crítica sobre a criação da Fundação IBGE+. A nova estrutura poderá captar recursos privados para produção de trabalhos.
Em nota, o Ministério do Planejamento e Orçamento, ao qual o instituto está vinculado, diz que o IBGE possui autonomia administrativa. A pasta, porém, declara que "acompanha os desdobramentos no órgão e mantém aberto um canal de diálogo com seus representantes".
A Folha tem procurado a presidência do IBGE para pedidos de posicionamento durante a crise, mas a gestão Pochmann disse ter adotado uma política de se manifestar via comunicados.
Em texto publicado no dia 15, condenou o que chamou de "ataques" de servidores, ex-funcionários e instituições sindicais, afirmando que os grupos divulgam "mentiras" sobre o instituto.
A presidência voltou a se manifestar nesta sexta (24), dizendo que deflagrou uma apuração interna sobre a existência de supostas consultorias privadas de servidores instaladas ilicitamente dentro do IBGE.
"A despeito de toda a pressão sobre a administração do IBGE, esta mantém presente compromisso e missão legal de apurar cabalmente toda e qualquer possível irregularidade dentro do IBGE", declarou.
Qual é a sua avaliação sobre a crise no IBGE?
O IBGE é um órgão do Estado brasileiro. Tem uma missão muito clara de levantar um conjunto de estatísticas e geoinformações atendendo a demandas da sociedade. Os institutos se caracterizam cada vez mais como produtores e disseminadores do seu trabalho de acordo com protocolos, com princípios fundamentais.
Isso significa que o IBGE é um órgão independente e absolutamente discreto. A partir do momento em que você transforma a direção do instituto de estatísticas, politizando, se misturando como se fosse um órgão de governo, a primeira coisa que acontece é uma queda drástica e rápida na credibilidade.
O sr. vê esse processo no IBGE?
Vejo isso acontecendo nessa gestão desde o início. Desde o início existem polêmicas. A postura da direção vem gerando preocupações no corpo técnico, e gradualmente as preocupações se transformaram em conflito.
O que existe hoje, claramente, é um conflito. A direção do IBGE tem respondido de forma belicosa, sendo extremamente centralizadora e autoritária nas decisões. Isso tem sido sistematicamente denunciado, não só pelo sindicato mas pelo corpo técnico também.
As saídas dos dois diretores da Diretoria de Pesquisas e as saídas na Diretoria de Geociências mostram claramente que o diálogo acabou. Dentro dessa postura belicosa, saiu nota da direção ameaçando ir ao Supremo, indicando que o corpo técnico estaria mentindo.
Isso já aconteceu em outra ocasião?
Nunca aconteceu. O IBGE teve, historicamente, conflitos, greves. Mas esses conflitos foram resolvidos de forma bastante exitosa, através do diálogo e, principalmente, do respeito ao grande núcleo de sabedoria do IBGE, que é o corpo técnico. O corpo técnico do IBGE é experiente, absolutamente consciente dos procedimentos que devem ser tomados.
Um pequeno exemplo: nunca um funcionário do IBGE que dissemina informação faz previsão ou dá opinião. Porque, se você começa a fugir do protocolo, a credibilidade começa a ser ameaçada.
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Um ponto que domina as manifestações recentes e que é criticado por servidores é a criação da Fundação IBGE+. Como avalia o projeto?
Não consigo entender a estrutura da fundação. O segundo ponto é [a IBGE+] fazer a gestão de ciência e tecnologia. O IBGE é um instituto que não é produtor de ciência. É usuário de resultados de ciência.
Tem diretrizes do IBGE ou questões que são muito mais importantes do que criar uma fundação sem sentido, gerada sem ouvir o corpo técnico e os usuários. Problemas, o IBGE tem vários. Mas tem de haver uma discussão de como você vai resolver as questões.
O financiamento das pesquisas sempre foi feito de modo orçamentário e sempre funcionou muito bem. Há problemas para conseguir a verba, para discutir o orçamento, porque a discussão orçamentária não é simples no Brasil.
Mas isso funcionou. Vem funcionando. Algumas pesquisas que precisavam de financiamento extraorçamentário foram realizadas com parcerias, uma parcela muito pequena da produção estatística do IBGE.
A questão da falta de pessoal está sendo resolvida. Tem o concurso e tem outras formas alternativas. A fundação não resolve os problemas do IBGE. Até agora, não se mostrou minimamente compreensível.
O sr. vê alguma saída para a crise? Ou por onde passa a saída?
Até algum tempo atrás acreditava que o caminho era baixar as armas, respeitar os protocolos, os princípios fundamentais, respeitar a equipe técnica e partir para um diálogo. A partir do momento em que os diretores não conseguem ter influência, e o corpo técnico, vou repetir, é quem sabe tocar [os processos] e quem tem experiência nisso, fica muito complicado ter diálogo.
Não vejo, no momento, condições de superar essa crise através de diálogo. Até porque, sistematicamente, você vê a postura belicosa da direção. Repito, nunca tinha visto uma direção acusar funcionários de mentirosos.
No meu ponto de vista, o governo tem de se conscientizar de que está lidando com uma crise enorme no principal produtor de estatísticas oficiais do país e tem de tomar atitudes em relação a isso. Não sou eu quem vai dizer [quais], parte do governo, dos ministros envolvidos no IBGE, a análise da situação.
Quando o sr. fala sobre o governo tomar atitudes, uma delas seria a troca da gestão?
É uma das possibilidades concluir que houve um desgaste e que esse desgaste vai ser resolvido através de algum tipo de troca ou de nova gestão. A questão básica é saber qual é a solução. Existem algumas e, entre elas, está a troca da direção.
Tem outro ponto que me preocupa, além da fundação e da crise institucional, que é uma visão, inclusive a palavra hoje nas conversas é 'centralizadora', de criação de um sistema nacional de geografia, estatística e dados [Singed, um projeto da atual gestão].
A organização de um sistema desse tipo não passa apenas pelo IBGE. O IBGE produz um conjunto de informações estatísticas e geográficas, porém, existem outros órgãos que produzem estatísticas ou bases de dados, como Datasus e Inep.
Falar em dados foge do escopo do IBGE, porque você não pode centralizar, tem questões jurídicas, vide os debates sobre a legislação de redes ou sobre a Lei Geral de Proteção de Dados. O sistema é muito mais amplo e jamais pode ser pensado através de uma organização única. Pensar em centralidade neste momento é um erro mortal.
RAIO-X | Roberto Olinto, 72
É engenheiro com mestrado e doutorado na área. Ingressou no IBGE em 1980 e ficou no órgão até 2019. Passou por diferentes funções no instituto até ocupar a presidência entre junho de 2017 e fevereiro de 2019. Hoje, é pesquisador do FGV Ibre.