Em 22 de maio de 2010, o programador Lazlo Hanyecz, então morador da Flórida, nos Estados Unidos, queria comer uma pizza. Duas, na verdade, e grandes, para "ter sobras para o dia seguinte".
Mas, em vez de pagar US$ 41 (algo em torno de R$ 240, na atual cotação), ele postou um anúncio em um fórum para interessados em bitcoin. Hanyecz perguntou se alguém estaria disposto a comprar as duas pizzas para ele, em troca de 10 mil bitcoins.
Um jovem de 19 anos se dispôs a fazer a troca. "Eu só queria dizer que eu consegui trocar 10 mil bitcoins por pizza", comemorou Hanyecz depois no fórum BitcoinTalk, há quase 15 anos.
Foi a primeira vez que uma moeda digital foi usada para fins transacionais, tornando-se um marco na história do setor. Até o Bitcoin Pizza Day, como a data é apelidada, o bitcoin não tinha valor correspondente em dólar ou em nenhuma outra divisa que existe no mundo analógico.
De lá para cá, o valor da criptomoeda mais famosa do mundo chegou a alcançar a casa das centenas de milhares de dólares, e 10 mil bitcoins compram muito mais do que duas pizzas grandes. Na atual cotação (US$ 104,9 mil), equivalem a US$ 1,06 bilhão (R$ 6,4 bilhões), sendo parte de um setor que encara um momento de virada com a volta de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos.
O QUE SÃO CRIPTOMOEDAS?
O conceito de criptomoeda nasceu em meio às turbulências econômicas causadas pela crise de 2008. A ideia era criar uma espécie de dinheiro virtual que pudesse ser transferido de uma pessoa para outra sem intermédio de uma instituição financeira, como bancos ou empresas processadoras de pagamentos.
Diferentemente de moedas fiduciárias —que são emitidas por um banco central—, as criptomoedas são moedas digitais descentralizadas, ou seja, não são controladas por nenhum governo ou país. Elas não têm representação física, como o dólar ou o real têm, e só existem virtualmente, apesar de terem valor no mundo real.
Mas não estar sob a tutela de um órgão não significa que o sistema seja desordenado. Muito pelo contrário. As criptomoedas estão sob redes chamadas "blockchains" (corrente de blocos, em português), que são, na prática, como um grande livro contábil.
A partir de sistemas avançados de criptografia —por isso "criptomoeda"—, os blockchains protegem as transações e os dados dos operadores. Essas redes são específicas para cada moeda digital e guardam registros de todas as movimentações feitas globalmente.
"É uma lista de transações que qualquer pessoa pode visualizar e verificar. O blockchain do bitcoin, por exemplo, contém um registro de todas as vezes que alguém enviou ou recebeu bitcoins", explica Fábio Plein, diretor regional da Coinbase para as Américas.
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COMO AS BLOCKCHAINS FUNCIONAM?
O que mantém o blockchain funcionando é uma grande rede de computadores e seus usuários.
Como não há um órgão fiscalizador, toda transação feita no "livro contábil" da criptomoeda precisa ser validada por alguém. Esse alguém é chamado de minerador.
"O minerador tem a responsabilidade de verificar se o remetente tem saldo para fazer aquela transação, se a assinatura digital dele bate com a registrada, todos esses detalhes", diz Samir Kerbage, CIO (diretor de investimentos) da corretora Hashdex.
Peguemos como exemplo a blockchain do bitcoin.
Imagine que as informações sobre as transações são abrigadas em blocos (os "blocks", de blockchain). A cada dez minutos, em média, o bloco atinge o número limite de transações, vindas de múltiplos usuários, e precisa ser "selado" com um identificador, como se fosse um cadeado.
Esse cadeado (no jargão, "hash") guarda um complexo problema numérico, com trilhões de possibilidades de solução. Só uma solução de fato tranca o cadeado, e é papel dos mineradores descobrirem qual. Isso é conhecido como "prova de trabalho".
Depois de descoberta a solução, aquele bloco é definitivamente selado e entra em uma corrente (o "chain", de blockchain), ligando-se a outros blocos através de elos. Esses elos protegem as informações, já que, se alguém tentar alterar as informações contidas nos blocos, os elos deixam de conectar um bloco ao outro, o que permite identificar fraudes com facilidade.
COMO CRIPTOMOEDAS SÃO EMITIDAS?
O processo de validação dos blocos gera recompensas para os mineradores: bitcoins que acabaram de sair do forno.
Toda vez que um "cadeado" é trancado, os mineradores responsáveis pela solução do problema recebem a criptomoeda. Ou seja, se a cada dez minutos há um novo bloco para "trancar", novos bitcoins surgem também a cada dez minutos.
Esse processo todo leva o nome de "mineração".
Qualquer pessoa pode ser um minerador, e quem decifra o código primeiro leva a bolada. Mas, como o cadeado guarda trilhões de possibilidades de solução, o processo exige computadores com grande potencial de processamento.
E, com a popularização de bitcoins, vários mineradores tentam encontrar a solução ao mesmo tempo, o que aumenta a competição. Isso, por sua vez, alimenta ainda mais a necessidade de maquinários superpotentes para dar conta do trabalho. Hoje, grandes centros de mineração estão conectados até a data centers, tamanha a necessidade de energia e tecnologia.
Outro problema que aumenta a competição: não há uma oferta infinita de bitcoins no mercado. O limite é 21 milhões de unidades, definido pelo criador da criptomoeda, Satoshi Nakamoto, cuja identidade nunca foi descoberta. Hoje, já foram minerados mais de 19 milhões e, para dificultar que o restante seja minerado rapidamente, ocorre o "halving".
No halving, o número de bitcoins contidos em cada bloco diminui pela metade a cada quatro anos. Em 2009, a recompensa era de 50 unidades. Em 2025, são 3,125. A previsão é que o último bitcoin seja minerado em 2140, e, a partir daí, os usuários terão de comprar a moeda uns dos outros —o que tende a valorizar o preço dela.
Outras criptomoedas, como ethereum, litecoin e dogecoin, também têm um processo de mineração parecido com o do bitcoin, cada qual com sua particularidade. Algumas, porém, não precisam ser mineradas. É o caso da tether, emitida pela Tether Limited, que pode ser comprada por quem tiver interesse.
É POSSÍVEL CRIAR CRIPTOMOEDAS NOVAS?
Sim, e a qualquer momento, por qualquer pessoa. Há diferentes formas de produção, que, em geral, exigem conhecimentos de computação e programação, bem como softwares específicos.
Criptomoedas podem ser criadas em blockchains já existentes ou serem desenvolvidas completamente "do zero", através de um novo livro contábil. "A rede do ethereum, por exemplo, tem milhões de criptomoedas registradas. Cada transação, por estar na rede dela, precisa pagar uma taxa nessa moeda", diz Kerbage.
Para criar uma criptomoeda, porém, é preciso definir alguns pontos. O propósito, por exemplo: qual problema essa criptomoeda quer resolver? Como ela vai agregar valor a quem comprar?
Os criadores também precisam pensar no fornecimento total de moedas, o método de distribuição e a forma com que a emissão de novas moedas será validada. Além disso, é preciso elaborar uma "tese de investimentos", isto é, uma estratégia de como a criptomoeda será mantida no longo prazo, construindo uma comunidade de usuários e aumentando a conscientização sobre a existência dela.
Há ainda as memecoins, que, como o nome sugere, são moedas "meme". Essas normalmente são criadas para surfar em tendências da internet e não têm uma "tese de investimentos".
"Elas são o que eu chamo de entretenimento financeiro. Têm a mesma finalidade que enviar um meme para um amigo: é divertido, mas não serve para nada. Quando alguém compra uma memecoin, não é pensando em patrimônio, portfólio, reserva de emergência, liquidez. É uma brincadeira", diz Fabrício Tota, diretor de novos negócios da plataforma Mercado Bitcoin.
PARA QUE SERVE UMA CRIPTOMOEDA?
Em alguns casos, as criptomoedas funcionam como moedas tradicionais e são usadas para compra e venda de produtos e serviços. Em El Salvador, por exemplo, lojas da cafeteria Starbucks aceitam bitcoins como forma de pagamento.
As criptomoedas também servem como investimento. Para ter ideia, o bitcoin foi o ativo mais rentável de 2024. Ao longo do ano, acumulou valorização de 183,25% em reais, pegando carona na alta do dólar e na vitória de Donald Trump nas eleições dos Estados Unidos.
Há ainda a função de reserva de valor. Como a oferta de bitcoins é escassa, a moeda é vista como "ouro digital": há muita demanda por ela, mas disponibilidade limitada, o que preserva o poder de compra de quem a tem. É diferente do real, por exemplo, que tende a perder valor ao longo do tempo por ser emitido todos os anos pelo BC.
Algumas criptomoedas também permitem "a criação de serviços financeiros, aplicações que miram ganho de produtividade, entre outras", diz Samir Kerbage, da Hashdex. Tem até algumas que são só de brincadeira, como as memecoins.
QUAIS SÃO AS PRINCIPAIS CRIPTOMOEDAS?
Em valor de mercado, são:
Bitcoin | US$ 2,1 trilhões |
Ethereum | US$ 408,4 bilhões |
Solana | US$ 128,9 bilhões |
Dogecoin | US$ 53,3 bilhões |
Cardano | US$ 35,2 bilhões |
Stellar | US$ 13,4 bilhões |
Polkadot | US$ 10 bilhões |
Litecoin | US$ 8,9 bilhões |
Uniswap | US$ 7,8 bilhões |
Aave | US$ 5,3 bilhões |
O QUE DEFINE O VALOR DE UMA CRIPTOMOEDA?
Na grande maioria dos casos, é a lei da oferta e demanda: quanto mais pessoas quiserem comprar, maior vai ser o preço. Assim, elas ficam sujeitas ao que move o mercado financeiro.
"Fatores internos da indústria de criptomoedas e fatores externos, como os cenários políticos e macroeconômicos das economias globais relevantes, podem ser determinantes para o desempenho", diz Fábio Plein, da Coinbase.
Em outros casos, as criptomoedas podem estar atreladas a uma moeda do mundo real. Essas são as chamadas stablecoins e estão lastreadas em ativos como dólar, euro, entre outros. A mais emblemática é a tether, cujo valor é ancorado no dólar.
"As stablecoins, em geral, têm uma empresa responsável pela emissão. No caso da tether, é a Tether Ltd. Para cada dólar que ela recebe, ela emite uma unidade de criptomoeda do outro lado", diz Samir Kerbage, da Hashdex.
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COMO INVESTIR EM UMA CRIPTOMOEDA?
É preciso abrir uma conta em uma corretora de criptoativos. No Brasil, algumas opções são: Binance, Coinbase, Hashdex, Mercado Bitcoin, Foxbit, entre outras.
"É possível investir em bitcoins por meio de ETFs, comprando uma cota. Esse é um ativo que pode servir como porta de entrada para investidores iniciantes que não têm conhecimento sobre o mercado de criptomoedas e não sabem ao certo como gerenciar seus próprios investimentos", diz Plein, da Coinbase.
ETFs (sigla em inglês para Fundo de Índice) são fundos de investimento com cotas negociadas na Bolsa de Valores. Eles replicam o desempenho de um índice. Por exemplo: há ETFs que emulam o Ibovespa e que rendem exatamente o quanto o Ibovespa variou naquele dia, para cima ou para baixo.
No caso das criptomoedas, os ETFs replicam o desempenho do bitcoin, por exemplo, ou de outro ativo.
Também dá para investir diretamente nas moedas. "Isso é recomendado para investidores mais experientes, que encontram mais autonomia nesse investimento", diz Plein.
Não é preciso ter centenas de milhares de dólares para investir no bitcoin. Ele pode ser fracionado em até oito casas decimais, e o investidor pode escolher o quanto quer aplicar.
QUAIS OS BENEFÍCIOS E OS RISCOS DE INVESTIR EM UMA CRIPTOMOEDA?
Apesar do bom momento, a classe já experienciou muita volatilidade nos últimos anos. O bitcoin, por exemplo, passou de US$ 0 a US$ 900 entre 2010 e 2016. No ano seguinte, saltou de US$ 1.000 para US$ 20 mil, e, em 2021, alcançou a marca da US$ 69 mil. No final de 2022, tombou a US$ 15 mil.
Especialistas atribuem essa volatilidade ao fato de o mercado cripto ter surgido há relativamente pouco tempo. "Isso é um comportamento normal para uma classe de ativos emergente", diz Fabricio Tota, do Mercado Bitcoin.
"Por outro lado, o fator novidade significa que também existe muita oportunidade de crescimento. Se essa classe continuar se valorizando como nos últimos 15 anos, o potencial de valorização é gigantesco para os próximos 5, 10 anos. Também temos tido avanços importantes do ponto de vista de regulação, e clareza regulatória é fundamental para atrair investidores que buscam mais segurança e, assim, desenvolver ainda mais esse mercado."
Por isso, a recomendação é parcimônia. Os criptoativos são vistos como investimentos de risco que podem ser estratégicos para a diversificação da carteira do investidor.
"Para os investidores brasileiros, recomendamos que o mercado cripto seja uma parte da alocação em renda variável, mas uma parte pequena. A diferença aqui entre o remédio e o veneno é o tamanho da dose."
Além disso, a classe coleciona escândalos, como a falência da FTX, outrora a segunda maior corretora do mundo, e o colapso do blockchain Terra e da criptomoeda Luna. No Brasil, golpes envolvendo pirâmides financeiras também tomaram o noticiário nos últimos anos.
COMO ESTÁ A REGULAMENTAÇÃO DO SETOR?
No Brasil, o Marco Legal dos Criptoativos (lei 14.478/2022) entrou em vigor em 2023. Ele estabelece algumas regras para empresas que operam com a classe de ativo, como a obrigatoriedade de uma licença específica para atuar no país, e tipifica crimes envolvendo criptomoedas no Código Penal.
O marco abriu caminho para que o BC (Banco Central) engatasse o processo de regulamentação específica para as companhias do segmento. Esse processo ainda está em curso.
Em novembro do ano passado, a autarquia abriu três consultas públicas sobre criptoativos. A ferramenta é utilizada para pedir opiniões sobre temas pertinentes e fundamentar regras e normas. O processo deve ganhar mais tração em 2025 e 2026.
Na União Europeia, a Lei dos Mercados de Criptoativos, conhecida em inglês como MiCA, foi introduzida pela primeira vez em 2020, aprovada formalmente em 2023 e implementada em 30 de dezembro de 2024.
A MiCA é a primeira grande jurisdição do mundo a estabelecer uma estrutura regulatória abrangente para o setor. Ela introduz órgãos reguladores, regime de licenciamento e supervisão para emissores de critoativos, plataformas e provedores de serviços, entre outras normas.
Já nos Estados Unidos, o setor passou anos em conflito com o governo do ex-presidente Joe Biden. O mandato foi marcado por esforços rigorosos de fiscalização contra diversos atores do setor e por mais de cem processos movidos contra empresas de criptomoedas.
"A tecnologia amadureceu bastante do ponto de vista de investimento, mas, do ponto de vista de política pública, principalmente nos Estados Unidos, ela foi renegada e teve uma perseguição regulatória muito forte", diz Samir Kerbage, da Hashdex.
Com Trump, a expectativa é por um momento de virada para o setor, com "mais clareza regulatória e, por consequência, mais espaço para crescimento dos criptoativos". O republicano é um vocal defensor do setor e prometeu, ainda em campanha, tornar os Estados Unidos a "capital cripto do planeta".