O problema da hidrovia é justamente o fato dela cruzar o Pantanal. O estudo explica que os rios que atravessam o bioma recebem sedimentos arenosos o ano todo, o que "exigiria dragagem perpétua" do canal do rio, o que "desconectaria o rio de sua planície". "Para a hidrovia funcionar, esses sedimentos precisam ser retirados. Mas para onde eles vão? Vão para as áreas baixas, fora do canal, diminuindo as áreas alagáveis", diz Mário Luis Assine, um dos autores do artigo e professor de Geociências e Meio Ambiente na Universidade Federal de Mato Grosso.
A existência [do Pantanal] depende do regime de fluxo natural de inundação e seca.
Trecho do artigo
Ao UOL, o governo afirmou que os sedimentos não serão depositados ao lado do rio. "Não vamos jogar [os sedimentos] para fora do canal, mas para dentro do rio mesmo", afirma o secretário de Hidrovias e Navegação do Ministério de Portos e Aeroportos, Dino Antunes.
Ele diz que o Pantanal não corre perigo porque apenas o tramo sul será explorado, o menos problemático. "Se a preocupação deles [cientistas] é o tramo norte, a gente assina o que for necessário dizendo que não temos interesse em fazer transporte no tramo norte porque é um trecho mais sinuoso", diz Antunes.
O risco de explorar o tramo sul
O impacto no tramo sul também é grande, afirmam os cientistas. Navegável, o trecho já transporta cerca de 8 milhões de toneladas, mas "sempre se respeitou o ciclo natural do rio", explica a bióloga da Embrapa Débora Calheiros, outra autora do artigo, que estuda a região desde os anos 1990. "De outubro a janeiro ou de setembro a dezembro, é seca", o que dificulta a navegação nesse período do ano.
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Um dos objetivos do projeto, no entanto, é dragar o Rio Paraguai nesse período também. "Estão querendo intervir muito no leito do rio, com dragagem de aprofundamento, e não só de manutenção", diz a bióloga, ao se referir à remoção dos sedimentos do fundo do rio para aumentar a profundidade dele.
Dino nega a intenção de realizar esse tipo de dragagem. "Não existe dragagem de aprofundamento no projeto", diz ele, que citou apenas a necessidade de dragagem de manutenção, necessária para evitar acidentes provocados por bancos de areia, que "podem prejudicar o bioma".
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A única maneira de navegabilidade o ano todo no tramo sul é com dragagem de aprofundamento, rebate a pesquisadora. "Para navegar com barcaças carregadas e em maior número, como querem agora, eles vão precisar fazer dragagem de aprofundamento."
Sua preocupação maior, afirma, é com o chamado "derrocamento" do rio, como prevê o governo. Trata-se da remoção de rochas do leito de rios. "Farão isso porque querem navegar inclusive na seca. É um absurdo total mexer na morfologia do rio porque as rochas servem como freio para diminuir a vazão, uma forma de garantir água no sistema, inclusive na seca", diz Calheiros.
Já foi feita simulação hidrodinâmica mostrando que a dragagem de manutenção [no tramo sul] não traz impacto significativo na hidrodinâmica do rio.
Dino Antunes, secretário de Hidrovias
Um parecer técnico entregue à Câmara dos Deputados diz temer mudanças de contrato depois da concessão. "Uma vez decretada oficialmente a via navegável (...) poderão alegar futuramente que tais ações passarão a ser necessárias para manter a navegabilidade, uma vez que apenas as dragagens não atenderiam mais aos indicadores de viabilidade técnica e econômica", diz o parecer, assinado por Calheiros e pela Procuradora da República Maria Olívia Pessoni Junqueira, em 2017.
Em 2024, foi declarado escassez hídrica em toda a bacia hidrográfica, algo inédito. Nos anos 1960 foram 10 anos seguidos de seca. A pergunta que fica é: o que vai acontecer com a concessionária se ficar um período de dez anos de seca?
Débora Calheiros, bióloga
Como acontece em concessões viárias, a fiscalização ficará por conta de quem arrematar a hidrovia. "Mas sem a concessão, as empresas vão transportar sem monitoramento ambiental", afirma Dino. Para a cientista, o modelo é perigoso. "Quem vai medir se é dragagem de manutenção ou de aprofundamento?", questiona.
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Trecho norte em perigo
Dragar o trecho sul deve interferir no trecho mais delicado da hidrovia: o tramo norte. "De onde vem a água que chega ao tramo sul? Vem do tramo norte. Se dragar no sul, vai chamar a água do tramo norte também", compara outro autor do artigo, Pierre Girard, doutor em hidrologia pela Université du Québec, no Canadá, e professor da Universidade Federal de Mato Grosso.
O estudo se debruçou principalmente sobre esse trecho da hidrovia, que é crítico. "O tramo norte tem dificuldade maior para navegação porque tem muitos meandros fechados e, além de dragar, teria de fazer algumas obras para as barcaças fazerem essas curvas", diz Girard. Assine completa: "Em alguns lugares se atravessa a pé, não dá nem para barco de turismo, imagina barcaças de 40, 50 metros cheias de minério."
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Para Assine, a concessão do tramo sul pode anteceder a do tramo norte. "Nosso artigo é um alerta: a concessão de um trampo vai se seguir ao outro tramo. Sem o primeiro não terá o segundo. Ele acaba sendo uma pressão para que o tramo norte seja aprovado adiante", afirma. "A gente não trabalha com perspectiva de tramo norte", reforça o secretário de Hidrovias e Navegação.
Além de prejudicar a hidrologia do Pantanal, a hidrovia pode comprometer a fauna e a flora. O Pantanal abriga 2.272 espécies de plantas, mais de 580 de aves e cerca de 386 espécies de peixe. "Se o bioma ficar mais seco, algumas funções vão se perder, como local de refúgio para peixes em reprodução", diz Gerard.
O Pantanal existe porque alaga. Se não alagar mais ou por muito pouco tempo, essa função é perdida. Por isso falamos sobre o fim do bioma. Ele vai diminuir ou desaparecer.
Pierre Gerard, hidrólogo
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