Gabriela Duarte, cansada de mocinhas e de falar da mãe, encena clássico feminista

há 2 dias 3

A protagonista de "O Papel de Parede Amarelo", clássico da literatura feminista, publicado por Charlotte Perkins Gilman em 1889, passa o conto trancada num quarto por seu marido, um médico renomado, durante um episódio de depressão pós-parto. É um cômodo amplo e arejado, mas com barras tapando as janelas, com uma cama pesada e paredes revestidas de um papel de um amarelo repleto de manchas repulsivas.

Adaptado por Alessandra Maestrini e Denise Stoklos para a performance solo de Gabriela Duarte, a história ganha nova roupagem. A cenografia parte para o simbólico, trocando as janelas bloqueadas por uma rede que separa a atriz da plateia, sumindo com a cama e também com o papel de parede, já que o amarelo contamina vários elementos em cena. De vermelho, com um penteado caótico, Duarte escancara o sufocamento da personagem com atrevimento.

"O conto tem um final dúbio de quem sucumbe ao papel. Não é o que acontece no nosso espetáculo", afirma Maestrini. "A gente traz luz, não se entrega às trevas. Às vezes com a comédia você consegue chegar mais longe e abrir as defesas para que as pessoas escutem o que precisa ser escutado."

Estrear seu primeiro monólogo é, em parte, para Duarte, uma celebração de seus 50 anos. Após uma trajetória cheia de mocinhas de novela e anos trabalhando em papéis ligados aos da mãe, Regina Duarte, ela leva agora ao palco uma personagem inconformada, tragicômica e forte.

Cansada das comparações, a filha ouve com desânimo a menção a sua mãe, afastada das telinhas desde que arriscou ser secretária de Cultura no governo de Jair Bolsonaro. "Quem vai estrelar a peça? Estamos falando de uma mulher de 50 anos que, concordo, fez a sua trajetória muito calcada em cima de uma parceria, cumprindo uma agenda que durante anos interessou a Globo. Mas lá mesmo comecei a deixar claro que eu não queria mais."

"Nunca foi um ressentimento. As pessoas ainda querem continuar acreditando que eu e ela somos a mesma pessoa, que temos as mesmas opiniões? Nos amamos, somos mãe e filha, mas ela tem a vida dela e eu tenho a minha", diz a atriz.

Sozinha no palco e com planos de lançar uma autobiografia no próximo semestre, Duarte vê sua vida e sua carreira em um outro momento. "Nunca ninguém me viu fazendo isso, posso dizer sem modéstia. Se é bom, se não é, não importa", afirma a atriz, no Teatro Estúdio, onde a peça fica em cartaz até 1º de junho.

A atriz e as diretoras veem o espetáculo como um misto de instalação, performance, dança e teatro. Duarte conheceu o conto de Gilman por meio de Ana Lee, que fez uma versão descartada da adaptação e se envolveu numa disputa legal com a atriz em busca de lucro sobre o espetáculo. Outros diretores chegaram a ser cogitados para tocar a produção, mas com Maestrini e Stoklos, duas artistas acostumadas a trabalhar juntas, o projeto foi para frente.

Como na obra de Gilman, do século 19, a performance de Duarte carrega um tom biográfico que ultrapassa sua esfera privada para repercutir em cada espectador. "Eu até queria falar de mim, por isso o título é ‘O Papel de Parede Amarelo e Eu’, mas me convenceram de que eu também estaria falando de todas as mulheres", diz.

"Amo o texto porque ele não exclui ninguém. Não sou o tipo que levanta grandes bandeiras. Tenho as minhas e quero que as respeitem, assim como respeito também a militância ou não dos outros. Esse texto não é militante, mas extremamente político, sem agressividade."

Já Maestrini considera o conto, sim, militante —é um precursor da literatura feminista. "Nesse momento, em que o mundo está tendo uma corrente muito forte de querer abrir mão de direitos já conquistados, é mais importante que a gente lembre das conquistas que já foram feitas. Esse espetáculo tem como base amor, liberdade e abaixo a opressão", diz a diretora.

Já Stoklos, apesar de ser a mais velha e experiente, se sentiu quase um excesso no projeto, face à criatividade e a liderança de Maestrini. "Se alguém vai ficar surpreso com esse espetáculo, acho que a primeira pessoa sou eu", afirma.

É claro, no entanto, o papel da diretora dentro do trio. As duas artistas mais jovens olham para a veterana com reverência, declaram ter nela um farol e é a partir de sua proposta de teatro essencial, marcado pela busca da expressividade do ator, que Maestrini conduz sua direção.

"Não tenho nem como explicar a inspiração que era olhar para a Denise e ver que ela estava ali, atenta, dando esse aval", diz Duarte. "Venho descobrindo que adoro as mulheres fortes e pioneiras. Abrir caminhos exige uma energia, tenho uma gratidão ancestral, acho que todas deveríamos ser gratas a elas."

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