Crítica: 'Rei Lear' com elenco de drags resgata natureza elisabetana do clássico

há 4 meses 23

A proposta de encenar uma das mais conhecidas tragédias de William Shakespeare, "Rei Lear", com um elenco de drag queens, cria a expectativa de que o espetáculo será uma paródia escrachada do clássico. Mas não é o que acontece nesta versão em cartaz em São Paulo.

A montagem dirigida por Inês Bushatsky no Sesc Consolação é um espetáculo profundamente "elisabetano" —isto é, se aproxima de modo admirável das formas teatrais praticadas no tempo de Shakespeare.

A começar pelo tipo de adaptação da peça, a cargo do poeta João Mostazo. As modificações do texto e a síntese construída partem de uma compreensão exemplar do que a peça tem de mais concreto, carnal e teatral, sem abandonar a grandeza literária de seus versos.

É um entendimento que também atravessa a cena, organizada de modo a manter conectados o horror trágico dos acontecimentos e a comicidade das situações. Em Shakespeare, mesmo os abismos mais profundos têm algo de engraçado. No mar de sangue que corre em "Rei Lear", por exemplo, navega também um bobo, sempre a comentar e ridicularizar os lances da trama.

Mas o mais surpreendente é como a montagem deste "Rei Lear" drag reativa em Shakespeare teatralidades muitas vezes esquecidas —ou que foram negligenciadas enquanto o autor se tornava um cânone literário nos séculos 18 e 19.

Teatralidades que, no entanto, formavam o coração de seus espetáculos. Nos mais conhecidos teatros da era elisabetana, os atores atuavam com um olho no palco, outro na audiência; a cena abria-se para fora dela mesma, com interações, apartes, comentários e canções. O público nunca esquecia que estava num teatro.

Também é assim no "Rei Lear" da Cia. Extemporânea. As drag queens retomam a vivacidade dos palcos ingleses do passado. Para isso, criam dois teatros sobrepostos. Ali em cena vemos as personagens da tragédia de Shakespeare e também, simultaneamente, as artistas/rainhas da noite, cujos nomes —Alexia Twister, Antonia Pethit, DaCota Monteiro, Ginger Moon, Lilith Prexeva, Maldita Hammer, Mercedez Vulção, Thelores, Xaniqua Laquisha— assinam o programa do espetáculo.

Os figurinos compõem, ao mesmo tempo, as personagens da tragédia e as drags que as interpretam. Além disso, elas atuam sempre voltadas para frente, como num show noturno, a comentar a ação e buscando pontos de conexão com o público —as luzes da plateia, aliás, poderiam estar acesas e o enquadramento frontal do palco do Teatro Anchieta ser mais vezes rompido.

Em algumas cenas, a duplicação teatral ganha ainda outros níveis, como no teatro-tribunal montado por Lear, que organiza um julgamento delirante de suas filhas Reagan e Goneril, para as quais deixou o seu reino, mas que, em posse do poder, passam a ver o pai e suas idiossincrasias de soberano como um velho fardo. Ou no pequeno palco montado na prisão do rei e de sua filha Cordelia já no final da tragédia.

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Tal jogo de espelhos corta logo qualquer expectativa de ilusão dramática, de identificação emocional ou de mergulho catártico na trama da tragédia. Também faz lembrar, o tempo todo, que estamos num teatro. Ou, indo além, que o mundo todo é um palco, tal como proclamava o suposto lema em latim do Globe Theatre de Shakespeare —"Totus mundus agit histrionem".

No entanto, a presença drag na cena não impõe apenas sua estética à tragédia. É extraordinário como, em "Rei Lear", o elenco transita da alegria irreverente, tão marcante no universo das drag queens, para momentos em que mergulham de cabeça na intensidade trágica das personagens.

Numa das cenas mais bonitas da montagem (e também da peça de Shakespeare), o velho Lear, à beira da loucura completa, enfrenta uma tempestade. Alexa Twister representa o monarca octogenário de forma tão sensível e inteligente, que é difícil conter as lágrimas.

Estas, contudo, contrastam uma sincronização labial hilária e fascinante de "It’s Raining Men", na mesma cena. Há festa e brilho, mas também solidão, violência e melancolia. Antagonismos fortes no espetáculo, no teatro de Shakespeare e, ainda, no universo queer, sobretudo num país como nosso.

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