A comoção causada pela série "Adolescência", da Netflix, que teve 160 milhões de horas assistidas em apenas 13 dias, é sintoma de uma revelação inconveniente: a de que o perigo está dentro de casa.
No enredo, adolescente Jamie Miller, 13, é o autor de um homicídio. Ele esfaqueou Katie, 13, sua colega de classe. E não se trata de um spoiler: a informação é apresentada logo no primeiro episódio. A questão que a série levanta não é quem nem como, mas por quê. E não há resposta simples nem única.
A incômoda sensação de proximidade com a tragédia de "Adolescência" provoca é fruto da aparente normalidade do contexto do assassino: uma família convencional e amorosa, uma escola tradicional, um quarto com computador e bichinhos de pelúcia.
Online e sem o conhecimento de seus pais, Jamie sofria bullying de Katie e acessava conteúdos redpill e incel, duas subculturas violentas da internet que compõem a chamada machosfera ou manosfera.
Redpill é o termo usado para designar indivíduos e grupos que pregam uma superioridade masculina radicalizada e que compartilham conteúdos misóginos, de ódio e submissão de mulheres.
Já incel, flexão em inglês das palavras celibatário e involuntário, indica pessoas que não conseguem encontrar um par romântico ou sexual. Majoritários entre os incels, os meninos culpam as mulheres por seu celibato involuntário e, em muitos casos, pregam a violência como vingança.
Especialistas ouvidos pela Folha alertam que este tipo de conteúdo é cada vez mais comum na internet, atrai adolescentes vulneráveis em busca de pertencimento e tem potencial para radicalizá-los a ponto de discursos de ódio online se concretizarem em crimes cometidos no mundo real.
Eles também são unânimes em dizer que os pais precisam estar mais presentes e acompanhar com atenção os conteúdos que crianças e adolescentes acessam na internet, além de suas conversas em redes sociais e aplicativos de trocas de mensagens.
"O cenário hoje é muito desafiador", afirma o delegado da Polícia Federal Flávio Rolim, chefe da Unidade de Repressão a Crimes Cibernéticos de Ódio (Urcod).
"Jovens que são abandonados no ambiente cibernético, desamparados, são recebidos por essas comunidades que promovem uma cultura de ódio contra mulheres, contra negros etc.", diz. "Há comunidades incel e redpill que monetizam muito dinheiro vendendo cursos e livros voltados a uma ideologia de inferiorização do sexo feminino."
Rolim diz enxergar, na prática, diferentes etapas de um processo de radicalização de adolescentes nas redes. Ela tem início na internet aberta, em redes como Instagram, Tiktok e Reddit e no YouTube, e em tom de brincadeira.
Em seguida, migra para programas como Telegram e Discord, em que circulam vídeos de violência contra mulheres e discursos de incitação a crimes.
O próximo estágio da radicalização acontece na dark web, a internet não indexada e que permite o anonimato, em que comunidades assumem nomes tão literais quanto clube dos feminicidas e clube dos estupradores, e por onde circula de tudo, inclusive tutoriais sobre como praticar atos de violência extrema. "O último estágio é quando essa subcultura se concretiza no mundo físico. E temos visto isso acontecer", afirma o delegado.
Vanessa Cavalieri, juíza da 1ª Vara da Infância e Adolescência do Rio de Janeiro, a única da capital fluminense a julgar crimes cometidos por adolescentes, corrobora o relato de Rolim. "Nos últimos anos, a gente tem tido muitos casos de feminicídio consumado por adolescentes, além de outras violências de gênero praticadas por eles", testemunha.
Ela revela também que parte desses meninos estava envolvido em comunidades misóginas na internet e que hoje há cada vez mais meninas adolescentes com medidas protetivas da Lei Maria da Penha por conta de stalkers e ex-namorados que as perseguem e ameaçam.
"Nesses grupos, meninos recebem explicações fáceis para suas infelicidades. Eles propagam que mulheres não prestam, que são interesseiras, e que o problema, portanto, é com elas, e não com eles", conta.
Nesses grupos, meninos recebem explicações para suas infelicidades que são muito fáceis de digerir. Propagam que mulheres não prestam, que são interesseiras, e que o problema, portanto, é com elas, e não com os meninos
Expostos periodicamente a imagens de violência inapropriadas para sua idade, eles se dessensibilizam. "É um mecanismo de proteção que vem sendo falado e estudado, e cuja consequência é a redução da empatia", diz.
Para Thiago Tavares, diretor-presidente da Safernet Brasil, essa naturalização da misoginia extrapola esses grupos. "Uma parcela da população naturalizou esse tipo de conteúdo, que passou a circular mais amplamente, inclusive em discursos políticos, vídeos, programas de rádio e podcasts, o que faz com que muita gente passe a defender essas ideias como legítimas."
A psiquiatra da infância e adolescência Gabriela Viegas Stump, que atua no Hospital das Clínicas da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) e no Sírio Libanês, ambos em São Paulo, explica que a exposição a esses conteúdos eleva o risco de dessensibilização porque ocorre em uma fase do desenvolvimento em que o adolescente "não tem desenvolvida a capacidade de se colocar no lugar do outro".
"Quanto mais jovem a pessoa é exposta a conteúdos violentos e abusivos, maiores as chances de se identificar com comportamentos negativos e de ser influenciado por eles ou de querer imitá-los, porque ainda não existe uma capacidade de pensamento crítico desenvolvida", explica ela. "O adolescente não tem arcabouço neurológico para a percepção do contexto e das consequências de longo prazo disso."
Quanto mais jovem a pessoa é exposta a conteúdos violentos e abusivos, maiores as chances de se identificar com comportamentos negativos e de ser influenciada por eles ou de querer imitá-los, porque ainda não existe uma capacidade de pensamento crítico desenvolvida [...] O adolescente não tem arcabouço neurológico para a percepção do contexto e das consequências de longo prazo disso
Para Juliana Diniz, psiquiatra, psicoterapeuta e neurocientista, pesquisadora no Instituto de Psiquiatria no Hospital das Clínicas, a banalização da violência por conta da hiperexposição a conteúdos do gênero lembra os debates a potencial má influência de videogames violentos em adolescentes.
"Esse medo não se confirmou. E minha impressão clínica é que um adolescente que não é vulnerável sequer se interessa por este tipo de conteúdo extremo, mas aqueles em vulnerabilidade podem se interessar. E essas imagens passam a figurar nas fantasias desses adolescentes, criando teorias da conspiração e explicações sobre o que acontece com eles", analisa a autora do livro "O Que Os Psiquiatras Não Te Contam" (ed. Fósforo).
O psicanalista Breno Herman Sniker, do departamento de psicanálise do Sedes Sapientiae, afirma que hoje meninos e homens têm dificuldade em lidar com a questão da masculinidade e não sabem como se posicionar de maneira razoável.
"O lugar do homem, que era tido como de respeito, dinheiro e poder, atributos desejados por mulheres que não trabalham, foi transformado pelas mudanças objetivas dos nossos tempos, quando muitas mulheres não precisam mais de um homem para sobreviver. Cria-se um vácuo em que essas ideologias redpill e incel se instalam porque trazem respostas fáceis."
Para ele, a série traz muitas camadas, entre elas, a do bullying que Jamie sofre. "Na idade dele, ser humilhado perante os amigos e colegas é algo mortal e envolve um sentimento de morte mesmo porque não são muitos os mundos em que esses adolescentes podem circular", explica.
A também psicanalista Julieta Jerusalinsky, professora da PUC-SP e diretora do Instituto Travessias da Infância, explica que a passagem para a adolescência tem a complexidade do luto da infância, do brincar e da proteção mais próxima dos pais. "Passa-se a um momento de transição dos laços familiares para os laços sociais, seja nas amizades, nos namoros ou nos interesses de vida. O adolescente é alguém que quer ganhar experiência e, portanto, pode acabar produzindo atos que decisivos para quem ele vai se tornar."
Jerusalinsky aponta que adolescer hoje em dia, no entanto, traz o desafio extra de uma cultura em que as redes sociais ocupam o lugar dos laços sociais, da família e dos namoros.
"Neste contexto, é complicada a função dos pais, que muitas vezes acham que os filhos estão protegidos porque estão no quarto, mas, através da janela virtual, chegam a eles transmissões não mediadas e discursos de intolerância que incentivam a violência com quem é diferente", diz. "É isso o que torna a série tão chocante."
Para ela, a série "não cai na armadilha de diagnosticar este ou aquele personagem, mas revela a complexidade de um laço social que é pervertido pela lógica da fama e da difamação das redes sociais, que impele a atos de violência contra si mesmo e contra os outros".
O remédio, diz, passa por conversar e debater as diferenças e discordâncias.
"O que aconteceu ali e acontece em quase todas as famílias é o abandono digital", diz a juíza Cavalieri. "Isto é, a negligência dos pais no ambiente digital, porque estão muito distraídos com seus trabalhos e seus próprios celulares", aponta. "Isso é uma violência porque coloca crianças e adolescentes em situação de risco extremo, seja porque podem ser tornar vítimas de abusos por quadrilhas digitais, seja porque podem acessar conteúdos inapropriados e perigosos."
Segundo ela, os pais precisam supervisionar o que adolescentes acessam e usar aplicativo de controle parental para monitorá-los e bloquear certos conteúdos.
"Há uma desconexão com a realidade. Os pais entregam aos filhos um produto que ele não tem maturidade para lidar sozinho. A idade mínima para usar WhatsApp é 16 anos. E quantos pais criam contas para os filhos mesmo assim e deixam eles sem monitoramento?", questiona. "Os pais ainda não entenderam que olhar o grupo de Whatsapp não é invadir privacidade, não é como ler um diário. É, sim, como supervisionar seu filho numa praça pública."