Os aviões com motor “a pistão” começaram a ser substituídos pelos turbojatos no fim da Segunda Guerra. Não demorou para que algumas fábricas de automóveis tivessem a ideia de fazer algo parecido.
Os primeiros a testar a novidade em carros foram os britânicos. Eles, afinal, já eram pioneiros no uso do jato em caças (no Gloster Meteor, de 1943) e em aviões comerciais (com o De Havilland Comet, de 1949).
No início dos anos 40, durante o esforço de guerra, a Rover desenvolvera as turbinas Whittle para aviões, antes que a Rolls-Royce assumisse esse setor. Daí surgiu a ideia de que um motor a jato (turbina a gás) poderia ser adaptado para impulsionar um automóvel. Teoricamente, fazia sentido, afinal, as turbinas tinham menos peças móveis que um motor ciclo Otto, rendiam mais potência (levando os carros a velocidades inimagináveis na época) e produziam menos vibrações.
Entre 1945 e 1949, a Rover desenvolveu uma turbina a gás para uso automotivo ou marítimo. Durante os trabalhos, ficou claro que seria necessário utilizar duas turbinas em conjunto: uma turbina de ignição, que operaria em rotações extremamente altas, e uma turbina motriz, que funcionaria em uma rotação bem mais baixa. A maneira mais fácil de testar o novo motor foi em um carro já existente: o pacato sedã Rover 75 (que, por seu porta-malas caído, ganhou no Brasil o chulo apelido de “c. de galinha”).

Foto de: Jason Vogel
Rover JET1 (1)
Sua carroceria foi modificada pela Salmons-Tickford, que cortou o teto e soldou as portas traseiras do sedã. Nas laterais, foram abertas grandes entradas de ar. Atrás dos três lugares que restaram, foi instalado um motor a reação, com a exaustão voltada para cima. Assim nasceu o JET1, primeiro automóvel movido a turbina — e também o primeiro carro com freios a disco nas quatro rodas, já que os tambores se superaqueciam rapidamente no esforço para reduzir sua velocidade.
Em março de 1950, o carro foi demonstrado ao comitê técnico do Royal Automobile Club e à imprensa. Nos testes iniciais, atingiu 142 km/h. Depois de ser apresentado no Reino Unido e nos Estados Unidos em 1950, o JET1 foi desenvolvido ainda mais e submetido a testes de velocidade na rodovia Jabbeke, na Bélgica, em junho de 1952, onde alcançou espantosos 246 km/h.
A revista norte-americana “Road and Track” publicou um teste completo do Rover a turbina em 1953. Os números até hoje impressionam, como o quarto-de-milha feito em 11,9 segundos, na melhor passagem. Para comparação, é o mesmo tempo obtido pelo Porsche 718 Spyder RS atual — imagine o que era isso há 72 anos! O JET1 continuou a ser exibido em ação até 1958, quando foi transferido para o London Science Museum, onde está até hoje.

Foto de: Jason Vogel
Austin TUR 1
Austin TUR 1
Diante de tal ousadia da Rover, a rival Austin achou por bem mostrar que também era dada a modernidades. Em 1952, a companhia começou a desenvolver seu próprio motor a reação. A cobaia usada para testar a novidade foi um Austin A-125 Sheerline, sedã de linhas um tanto ultrapassadas para os padrões dos anos 50. Era, porém, o único modelo da marca grande o suficiente para receber a nova mecânica.
A turbina foi instalada no lugar do motor convencional. O capô teve que ser esticado para abrigar um nose cowl que servia como silenciador de admissão. Sobre o capô, havia aberturas para deixar sair o calor da turbina. A primeira demonstração pública do carro foi realizada em julho de 1955. Para quem estava do lado de fora, o protótipo soava como um avião. Na cabine, o ruído era “aceitável”.
O motor a reação da Austin foi projetado para queimar diesel, já que o combustível podia ser encontrado em qualquer posto. O eixo da turbina se conectava a uma transmissão automática tipo Hobbs, na traseira do carro.
Na época, o renomado jornalista automotivo britânico Gordon Wilkins relatou: “As principais fábricas de automóveis do mundo estão empenhadas em uma corrida para lançar no mercado o primeiro carro de turbina a gás, talvez dentro de 5 ou 10 anos. O prêmio que almejam é um carro veloz, macio e de dois pedais, sem marchas que devam ser trocadas (...)”.
Teoricamente, a turbina tinha a vantagem de queimar combustíveis de baixa qualidade, gerar muito torque e potência, ter instalação simples e manutenção fácil. Seu maior problema, contudo, era o consumo: batizado de Austin TUR 1, o protótipo fazia 1,6 km/l...
E mais: na largada, o motorista acelerava, e havia um hiato de tempo até que o carro começasse a se mover lentamente. Como o motor trabalhava muito quente, havia risco de incêndio se houvesse qualquer pequeno vazamento de combustível ou óleo. Isso sem falar no barulho.
A Austin desistiu da ideia, o protótipo acabou abandonado e, em 1958, foi sucateado pela fábrica.

Foto de: Jason Vogel
Fiat Turbina (3)
Fiat Turbina
A Fiat foi outra pioneira nesse tipo de tecnologia, iniciando estudos no tema em 1948. À frente do projeto estava o engenheiro-chefe Dante Giacosa, juntamente com Francesco Bellicardi. A ideia básica era posicionar uma turbina a gás na parte traseira de um carro esportivo, criando assim um veículo sem precedentes. O desenvolvimento foi realizado em colaboração com a Fiat Aviazione, divisão aeronáutica do grupo italiano.
O arrojado Fiat Turbina fez seu teste inicial em 14 de abril de 1954, na pista de Lingotto, no teto da fábrica. Naquele mesmo mês, o bólido foi levado ao Aeroporto de Turim-Caselle, onde fez algumas demonstrações para o público, com o chefe de testes da Fiat, Carlo Salamano, ao volante.
Todas as principais personalidades da Fiat estavam presentes, incluindo Gianni Agnelli, principal acionista da companhia. Dali, o Turbina foi levado diretamente para o estande da marca no 36º Salão do Automóvel de Turim, chamando a atenção de muitos por seu design inovador.
O motor turbina ficava posicionado entre eixos, atrás do cockpit. O sistema, que operava com um compressor centrífugo de duplo estágio, era conectado diretamente ao eixo traseiro do carro por meio de uma série de juntas homocinéticas e um redutor de torque. Não havia caixa de câmbio nem embreagem.
Durante os primeiros testes em bancada e em estrada, a Fiat descobriu que o conjunto era capaz de gerar cerca de 300 cv, uma potência impressionante para a época. A velocidade máxima estimada era de aproximadamente 250 km/h. A carroceria passou por testes em túnel de vento nas instalações do Politécnico de Turim, com os testes mostrando um coeficiente de arrasto de apenas 0,14 — um recorde aerodinâmico que permaneceu nas mãos da Fiat até 1985 (quando a Ford Ghia, também de Turim, mostrou o conceito Probe V, com Cx de 0,137).
O Fiat Turbina foi arquivado devido ao alto consumo de combustível e problemas com o superaquecimento. Hoje, o carro está em exibição no Museo Nazionale dell'Automobile, em Turim.

Foto de: Jason Vogel
SOCEMA-Grégoire 1952
SOCEMA-GRÉGOIRE
O Salão do Automóvel de Paris de outubro de 1952 foi palco da apresentação do curioso Grégoire-Hotchkiss, movido por uma turbina a gás. O engenheiro J. A. Grégoire, em parceria com a S.O.C.E.M.A. (Société de Constructions et d’Études de Matérials d’Aviation), criou um cupê de visual impressionante, com design assinado pela Hotchkiss.
Com motor dianteiro e tração traseira, o Socema-Grégoire podia atingir 200 km/h. O carro contava com uma caixa de câmbio semiautomática Cotal. Para a frenagem (já que a turbina não oferecia freio-motor), foi instalado um retardador eletromagnético (retarder) Telma à frente do diferencial. Esse conjunto muito avançado e incomum também era repleto de problemas que logo condenaram o projeto ao esquecimento.
Superaquecimento, consumo de combustível elevadíssimo, dificuldades na construção da turbina e o sistema de freios excessivamente complexo transformaram o ousado protótipo em mais uma peça de museu (no caso, o Museu das 24 Horas de Le Mans, onde o fotografamos há alguns anos).

Foto de: Jason Vogel
Renault Étoile Filante (3)
RENAULT ÉTOILE FILANTE
Outros franceses teriam mais sucesso… A Renault decidiu projetar um carro movido a turbina para bater recordes de velocidade. O resultado desse projeto visionário foi o Renault Étoile Filante, um monoposto experimental que até hoje impressiona pela engenharia e pelo design fora do comum.
O nome Étoile Filante, “estrela cadente” em francês, é apropriado para um veículo concebido para voar rente ao chão. O projeto começou a tomar forma em 1954, impulsionado por uma parceria entre a Renault e a fabricante de turbinas Turboméca, cujo chefe, Joseph Szydlowski, era um dos maiores nomes no desenvolvimento de motores para helicópteros como os célebres Alouette II.
A ambição era clara: o então diretor da Renault, Pierre Lefaucheux, queria levar a marca francesa ao topo das manchetes internacionais com um recorde de velocidade. Para isso, reuniu uma equipe de peso, formada por Fernand Picard (engenheiro-chefe e responsável pelo design futurista), Albert Lory (lenda da engenharia de motores) e Jean Hébert, que além de engenheiro também seria o piloto de testes.
O resultado foi um carro único, com estrutura tubular revestida por uma carroceria de fibra de vidro e dois grandes estabilizadores verticais traseiros, inspirados na aviação. O motor? Nada menos que uma turbina Turboméca Turmo I, de 270 cv a impressionantes 28.000 rpm, movida a querosene e praticamente isenta de vibrações. A transmissão era a semi-automática Transfluide, que mais tarde equiparia os sedãs Renault Frégate. Tudo pensado para cortar o vento com o mínimo de resistência — o carro passou por testes em túnel de vento durante dois anos.
A estreia oficial aconteceu em 22 de junho de 1956, no autódromo de Linas-Montlhéry, perto de Paris. Mas foi do outro lado do Atlântico que o Étoile Filante brilhou de verdade: em 5 de setembro de 1956, no lendário deserto de sal de Bonneville, nos Estados Unidos, Jean Hébert levou o protótipo ao limite: 308,85 km/h em cinco quilômetros, estabelecendo um recorde de velocidade para veículos com menos de 1.000 kg — marca que nunca foi superada nessa categoria. Em um trecho de um quilômetro, o carro chegou a 306,9 km/h.
A façanha ganhou repercussão mundial, especialmente na imprensa americana, e ajudou a projetar a imagem da Renault nos EUA, impulsionando inclusive o lançamento do pequeno sedã Dauphine no mercado norte-americano.
Apenas dois exemplares do Étoile Filante foram construídos, sendo usados em recordes, demonstrações e exposições. No fim, suas turbinas foram devolvidas à Turboméca (eram apenas emprestadas à Renault). Atualmente, um dos carros está com o colecionador Alberto Gironella, na Cidade do México, enquanto o outro pertence ao departamento de clássicos da marca francesa.
Em 2016, para celebrar o 60º aniversário de seu recorde, o Étoile Filante que pertence à Renault Classic foi equipado com um motor elétrico e levado de volta ao Bonneville Salt Flats, onde foi guiado pelo piloto Nicolas Prost.
Nos Estados Unidos, a General Motors e a Chrysler também desenvolveram carros a turbina nos anos 50 e 60, mas isso é assunto para outro dia.