Carro e folia: do corso ao Sambódromo, os automóveis entram na avenida

há 1 mês 6

Neste domingo de carnaval, a Volkswagen mostrará pela primeira vez, sem disfarces, o SUV compacto Tera, um rival do Fiat Pulse e do Renault Kardian. A apresentação (que a VW chama de “revelação”) será à tarde, em plena Praça da Apoteose, no Sambódromo do Rio de Janeiro. Depois, às 22h, a Unidos de Padre Miguel entrará na avenida dando início aos desfiles das escolas de samba do Grupo Especial.

Não é a primeira vez que fabricantes levam seus carros à Marquês de Sapucaí em tempos de carnaval. A Nissan, que tem a sua sede no Rio, já patrocinou duas escolas de samba cariocas: primeiro, o Salgueiro (de 2014 a 2017) e, em seguida, a Vila Isabel (2018 e 2019). 

Na época, durante os ensaios técnicos, os March, Versa e Kicks entravam na avenida para marcar as posições dos carros alegóricos antes do desfile oficial. Em 2015 e 2016, o papel coube aos March e Versa e, em 2017 e 2018, ao Kicks.

O conceito do Kicks (2015) pintado de vermelho e branco em homenagem ao Salgueiro

Foto de: Motor1 Brasil

O conceito do Kicks (2015) pintado de vermelho e branco em homenagem ao Salgueiro

No carnaval de 2015, os designers da Nissan no Rio homenagearam o Salgueiro pintando um protótipo Kicks Concept de vermelho e branco — as cores da escola de samba da Tijuca, bem como das bandeiras do Japão e do estado de Minas Gerais, tema do enredo daquele ano. Isso aconteceu 1 ano e meio antes de o Kicks ser lançado no país. 

Para 2018, quando a Vila Isabel saiu com o enredo “Corra que o futuro vem aí!”, a equipe de design da Nissan do Brasil chegou a projetar, juntamente com o carnavalesco Paulo Barros, um carro alegórico encimado por um automóvel voador.

Retrocedendo um pouco mais, chegamos ao carnaval de 2000. Nos intervalos entre as passagens das escolas, era a recém-lançada Renault Scénic quem desfilava pelo Sambódromo. A marca francesa montou até um camarote para convidados.

Nissan Kicks no ensaio do Salgueiro - 2017 (3)

Foto de: Motor1 Brasil

Nissan Kicks no ensaio do Salgueiro - 2017

E essa ligação entre automóveis e folia começou há muito mais tempo, bem no início do século XX.

Imagine a cena: sentados sobre a capota arriada de um conversível, com os pés no banco traseiro, adultos, jovens e crianças atiram serpentinas e confetes nos outros automóveis, indo e voltando pela Avenida Rio Branco, a principal via do centro do Rio.

O povo se posta ao longo do meio-fio para ver a passagem dos carros enfileirados. Não há música tocando alto, só a brincadeira de jogar serpentina e bisnagar lança-perfume. Quem não tem automóvel próprio, aluga um para participar da brincadeira.

Estamos falando do corso, uma festa carnavalesca motorizada que teve seu auge nos anos 1920, quando reunia centenas de carros particulares e de praça. Na década seguinte, porém, a onda foi minguando rapidamente até desaparecer da folia carioca, sem fazer marola.

Av Rio Branco, carnaval de 1927 - era o auge dos corsos (foto Guilherme Santos, acervo IMS)

Foto de: Motor1 Brasil

Av Rio Branco, carnaval de 1927 - era o auge dos corsos (foto Guilherme Santos, acervo IMS)

Av Rio Branco, carnaval de 1927 - os corsos estavam em seu auge (foto Guilherme Santos, acervo IMS)

Foto de: Motor1 Brasil

Av Rio Branco, carnaval de 1927 - os corsos estavam em seu auge (foto Guilherme Santos, acervo IMS)

Em tempo de superescolas de samba e megablocos de rua, o desfile de velhos Hupmobile, Essex, Buick e Ford T pela principal avenida do Rio resiste apenas em registros em preto e branco de fotógrafos como Augusto Malta e Guilherme Santos, além de alguns poucos filmes da época.

Mesmo os estudiosos do carnaval não dedicam muita atenção ao corso, uma brincadeira que começou entre a elite carioca e foi imitada em outras cidades do país. Em São Paulo, por exemplo, um corso “ultra-chic” acontecia na Avenida Paulista. 

Segundo o livro “A História do Carnaval Carioca” (1957), de Eneida de Moraes, o corso nasceu em 1907, quando as filhas de Afonso Pena, então presidente da república, percorreram de automóvel a recém-inaugurada Avenida Central (que seria rebatizada de Rio Branco em 1912).

Os poucos cariocas que tinham automóveis — havia só 99 carros licenciados na cidade — gostaram da idéia e passaram a circular pela avenida, fazendo batalhas de confete, serpentina e lança-perfume Rodo. Não havia qualquer conotação de festa popular: era um desfile de status, com carros que levavam filhos de pessoas consideradas importantes.

Carnaval de 1914 - no início, muitos carros eram decorados (revista Fon-Fon)

Foto de: Motor1 Brasil

Carnaval de 1914 - no início, muitos carros eram decorados (revista Fon-Fon)

O prefeito Pereira Passos dera um banho de civilização no Rio e convinha tentar domar o carnaval, uma bagunça plebéia na qual ninguém se entendia mas todos acabavam se divertindo. No início do século XX, o epicentro da festa migrou para aquela nova avenida de arquitetura afrancesada e tomou um caráter, digamos, mais organizado.

O corso nasceu junto com as avenidas Central e Beira Mar, que permitiam um desfile de sete quilômetros entre a Praça Mauá, no porto, e o Mourisco, em Botafogo.

A Avenida Central era dividida por um canteiro e tinha mão dupla. Assim, os enormes double phaetons e landaus podiam ir e vir à vontade. Jornais passaram a estimular o desfile de bacanas, premiando os carros mais enfeitados ou com mais foliões. A festa acontecia na tarde do domingo, dia morno no carnaval carioca de então. Deu certo.

Nas duas décadas seguintes os automóveis foram se popularizando e o corso caiu no gosto da classe média alta. Usando a imaginação, grandes grupos de foliões saíam vestidos iguais. Sorte dos chauffeurs de praça, que escolhiam a véspera do carnaval para comprar seus carros a prazo. Em 1919, um Opel zero-quilômetro custava sete contos e quinhentos mil réis — e, em um único dia de aluguel para o corso, o motorista podia recuperar até um conto de réis.

Corso na Av Rio Branco - Carnaval de 1930  (foto Guilherme Santos, acervo IMS)

Foto de: Motor1 Brasil

Corso na Av Rio Branco - Carnaval de 1930 (foto Guilherme Santos, acervo IMS)

Em meados da década de 1920, os cordões, ranchos e grandes sociedades viviam seu grande momento. O povão também se divertia em blocos de nomes sugestivos como “Caçadores de veados”. 

Enquanto isso, o corso começou a se asfixiar por seu próprio tamanho: eram centenas de automóveis, colando um para-choque no outro, da praça Mauá ao obelisco. Formavam um engarrafamento espontâneo. A turma trancava a rua de propósito e começava uma guerra de lança-perfume com quem estava na calçada.

Criou-se até uma versão popular do corso, com batalhas de serpentina travadas entre passageiros de bondes. Pode-se imaginar o que tamanho engarrafamento em pleno verão carioca fazia aos precários sistemas de refrigeração dos carros da época — que, aliás, eram sobrecarregados com grupos de até   doze foliões.

Assim, nos anos 30, o corso foi saindo de moda. A Avenida Rio Branco estava cada vez mais apinhada, surgiam as escolas de samba e, por fim, os grandes automóveis abertos (double phaetons) deram lugar a sedãs fechados ou pequenas baratas. Só os carros mais velhos continuavam a ser usados para a folia, como se pode perceber nas preciosas fotos coloridas de Hall Preston, para a revista “Life”, no carnaval carioca de 1942.Hall Presto Hall Presto

Havia ainda a questão da mudança dos costumes: o corso era um divertimento casto, que separava as pessoas, já que cada grupo brincava em um automóvel  — o máximo que acontecia era um leve roçar de coxas. Já os bailes em clubes aproximavam os foliões.

Com o racionamento de gasolina decorrente da Segunda Guerra, a brincadeira desandou de vez. Ainda houve tentativas de repetir o carnaval motorizado na Avenida Atlântica, em Copacabana, sem sucesso. O corso havia ficado para trás.

Rio, carnaval de 1942 - um dos últimos corsos na cidade, em foto de Hall Preston (revista Life)

Foto de: Motor1 Brasil

Rio, carnaval de 1942 - um dos últimos corsos na cidade, em foto de Hall Preston (revista Life)

Um texto saudosista publicado em 1953 na revista “Fon-Fon” ilustra essa transição:

“O carnaval já mudou completamente de aspecto nestes últimos vinte anos. Morreu o corso e com ele o grande desfile de garotas bonitas em vistosas fantasias no alto das capotas dos automóveis abertos, as batalhas de confetes e serpentinas e a brincadeira, outrora inocente, dos lança-perfumes. O nosso Carnaval de rua é apenas um fantasma suado de calor tropical.

Ele recolheu-se para os salões fechados, perdendo a sua naturalidade e ganhando muito em libidinagem.”

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