Bukele construiu paraíso fiscal de criptomoedas, mas bitcoin não pegou em El Salvador

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O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, quis tornar seu país a capital do bitcoin quase quatro anos antes de o presidente americano Donald Trump ter o mesmo plano para os Estados Unidos.

Na quarta (29), a medida para tornar obrigatória a criptomoeda como meio de pagamento foi derrubada pelo próprio partido do líder salvadorenho, o Novas Ideias, que comanda o Congresso. Mas o plano de atrair investidores interessados em criptoativos para o país continua avançando.

Sinal disso foi a reunião de algumas das principais empresas do setor na capital, San Salvador, na quinta-feira (30), durante o congresso Plan B.

Após aprovar, em 2021, a chamada Lei Bitcoin, que tornou o ativo uma moeda oficial em El Salvador, o governo salvadorenho investiu na criação de um marco legal para os ativos digitais que abriu caminho para o país se tornar um paraíso fiscal das criptomoedas.

O texto proposto por Bukele reconheceu os elos da cadeia de criptomoedas e passou a isentar os lucros auferidos com a valorização dos criptoativos —antes eles eram taxados como bens financeiros, a exemplo do que acontece com ações.

A medida trouxe "segurança jurídica" para o setor, disseram empresários europeus e americanos ouvidos pela Folha durante o Plan B, o maior congresso sobre bitcoin da América Latina, realizado em San Salvador. Hoje, o país abriga 39 empresas de cripto licenciadas.

"Eu sou um cidadão de El Salvador", afirma Paolo Ardoino, CEO da empresa de criptomoedas Tether, a criadora da USDT, que é ancorada no dólar e, por isso, tem um valor mais estável e recebe o nome de stablecoin.

Trata-se de uma das criptomoedas mais usadas no mundo. No Brasil, por exemplo, a USDT responde por 80% do tráfego nacional de criptomoedas, de acordo com dados da Receita Federal.

Folha Mercado

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Em 2024, o CEO da Tether comprou imóveis em El Salvador e se naturalizou salvadorenho, antes de mover a sede da sua empresa para San Salvador, no último dia 17, sob a promessa de construir um prédio maior do que os recém-inaugurados escritórios locais do Google.

A mudança de sede se deu em meio a conflitos da empresa com o regulador europeu, que proibiu negociações com USDT na quarta-feira, já que a empresa não recebeu licença.

Para Ardoino, que desistiu de se licenciar no velho continente, a regulação de mercados de ativos digitais (Mica), aprovada na União Europeia, protege os bancos e não os consumidores. O problema seria a exigência de um depósito de segurança de 60% do investimento em ativos como forma de garantir o valor da moeda. "Os bancos podem emprestar 90% desse montante. Quem vai me garantir segurança se eu precisar pagar meu cliente?", questiona.

A legislação europeia também elenca critérios de transparência mais estritos do que o marco legal salvadorenho e abre margem para a taxação dos lucros obtidos com criptoativos.

Além da "regulação favorável", o país de Bukele oferece "prosperidade e segurança", diz Ardoino, ao se referir à abordagem linha-dura contra o crime organizado em curso, que teve como pedra fundamental a prisão sem mandado de 80 mil pessoas acusadas de participar de quadrilhas.

"É o contrário da Europa, que está cada vez mais insegura e mais avessa à inovação, onde regulam as tecnologias antes de entendê-las", afirma Ardoino.

Ele reconhece que, hoje, não há mão de obra especializada à disposição em El Salvador e quer compensar isso com treinamento. Inicialmente, a Tether buscará profissionais no exterior.

O governo aceitou flexibilizar a obrigatoriedade de aceitar criptomoedas porque essa foi uma das condições impostas pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), a quem El Salvador pediu um empréstimo de US$ 1,4 bilhão do para enfrentar os entraves macroeconômicos.

O próprio Bukele, ao tratar do acordo com o FMI e da flexibilização da Lei Bitcoin, reconheceu que a obrigatoriedade da cripto como meio de pagamento desagradou os salvadorenhos e foi a medida mais impopular de seu primeiro mandato, coroado com uma reeleição com 80% dos votos em 2024.

A nova posição de El Salvador em relação ao bitcoin deve ter pouco efeito prático para as empresas de criptoativos, avalia Jesse Knutson, diretor de operações da corretora BitFinex, a segunda maior detentora de bitcoins do mundo, atrás apenas da Binance. Essa foi a primeira empresa a obter a licença para operar na região e também buscou se sediar no país.

Para ele, a revogação do bitcoin como moeda oficial é indiferente, "o que importa é a segurança jurídica". "A lei já não tinha pegado na prática, as pessoas não aceitavam. Então, para nós, nada muda", afirma. "A lei de 2021 sinalizou uma boa-vontade de Bukele com o setor", acrescenta.

Principal conselheiro de Bukele na guinada pró-bitcoin, o empresário canadense Samson Mow diz à Folha que é questão de tempo e de educação até que as pessoas adotem os criptoativos no dia a dia de El Salvador.

Apesar de ser entusiasta do setor, Mow afirma que a bitcoin impõe um desafio técnico para quem está começando e pode ser muito instável para usar no dia a dia.

Segundo ele, a disponibilidade de carteiras com USDT, cujo valor está atrelado ao dólar, deve acelerar a adoção de criptomoedas em El Salvador, que já tem a economia dolarizada.

"As transações com criptomoedas estão cada vez mais rápidas, e usando o canal liquid [uma das redes de troca disponíveis] custa US$ 0,03", diz Mow. "A taxa para fazer isso no canal da Ethereum era de US$ 10. Quem tem isso para gastar em um pagamento na América Latina?", questiona.

O empresário brasileiro Rocelo Lopes, que integrou bitcoins e stablecoins ao Pix, afirma que, em países sem um sistema financeiro desenvolvido como o brasileiro, as criptomoedas têm o potencial de assumir o papel de transações instantâneas. Ele também sinaliza que planeja levar a sua empresa, SmartPay, para El Salvador.

Para a maior parte dos salvadorenhos, o entusiasmo dos investidores de criptomoedas com o país ainda não se reverteu em uma revolução econômica. "Não é um país barato, não posso dizer que tenho fartura na mesa todos os dias", afirma o motorista José Reyes.

Um a cada quadro salvadorenhos viviam, em 2023, na linha da pobreza, com uma renda diária abaixo de US$ 1,90, na definição do Banco Mundial. O nível de endividamento do país está na casa dos 80% do PIB (Produto Interno Bruto), acima do Brasil.

Em coletiva no final do ano passado, Bukele afirmou que "seu sonho —o milagre da economia—" vai demorar mais do que o "milagre da segurança", como os salvadorenhos chamam a queda do número de mortes no país de 4.000 por ano, em 2017, para uma taxa anual de 79, no ano passado.

A oposição salvadorenha, por outro lado, classifica as decisões econômicas de Bukele como oportunistas. "Recursos públicos e a máquina administrativa estão sendo direcionadas a interesses privados sem transparência adequada", afirma a deputada oposicionista Claudia Ortiz, do partido Vamos.

Segundo a socióloga Brooke Harrington, autora do livro "Offshore: Stealth Wealth and the New Colonialism" (algo como "offshore: riqueza furtiva e o novo colonialismo", em português), em paraísos fiscais, é uma tendência que governos privilegiem os interesses de grupos financeiros às demandas da população. "Como esses países não têm uma produção local significativa para manter uma balança comercial, os governos precisam se mobilizar para atrair esse dinheiro do exterior", afirma.

O jornalista viajou a San Salvador a convite da SmartPay

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