VW já compara o Tera ao Fusca e ao Gol. Não será muita pretensão?

há 1 mês 7

Durante a apresentação do Tera à imprensa, no último domingo, no sambódromo do Rio, um dos slides mostrava o novo modelo ao lado de um Fusca e de um Gol, simplesmente os dois modelos de maior sucesso da história da Volkswagen no Brasil. Os executivos da marca falavam do orgulho de ter um modelo desenhado aqui, pensado para o mercado local, bem como para outros países na América Latina e na África.

E fato é que a equipe comandada por José Carlos Pavone, chefe de Design da VW para as Américas, mandou bem no estilo. Para não deixar dúvidas quanto às pretensões de sucesso com o novo carro, ainda puseram um easter egg na base do vidro traseiro, com a silhueta do Fusca, do Gol “quadrado” e do Tera, como se fosse o sucessor espiritual dos dois ícones.

Não será pretensão demais compará-lo a antepassados de tanto sucesso? Para começar, o Tera sequer chegou às lojas. Por suas características, pode-se imaginar que será um êxito de vendas. Basicamente, é um Polo mais alto e com um visual mais jovial, prometendo aventuras ao estilo “SUV compacto”, tão em voga. Se pegarmos a lista de carros de passeio mais vendidos no ano passado, temos o Polo em primeiro lugar e o SUV T-Cross em quinto — teoricamente, se tiver um preço bem calibrado, o Tera deverá ficar em algum ponto entre os dois.

Daí a pôr o calouro Tera no mesmo patamar dos veteranos Fusca e do Gol são outros quinhentos… 

No dia da inauguração oficial, o Fusca  nacional já era fabricado há 10 meses

Foto de: Jason Vogel

No dia da inauguração oficial, o Fusca nacional já era fabricado há 10 meses


Fusca, sucesso mundial

O Fusca nasceu dos projetos de Ferdinand Porsche e de sua genial equipe. Eram profissionais  do quilate de Karl Rabe (engenheiro-chefe do time e principal projetista dos Auto Union de GP), Erwin Komenda (que mais tarde desenharia as carrocerias dos Porsche 356 e 550 Spyder, entre outros modelos imortais) e Franz Xaver Reimspiess (que além de idealizar o motor quatro cilindros boxer em apenas 48 horas, ainda desenhou o logotipo VW usado até hoje).

Cada detalhe do Fusca foi calculado para alcançar as metas estipuladas pelo governo alemão, que contratou o escritório de Porsche para concretizar o projeto. Deveria ser um carro leve, barato, resistente às intempéries, econômico e acessível a todos os alemães, 

Até então, os carros populares eram versões reduzidas dos carros normais: motor dianteiro “em linha” de pequena cilindrada, tração traseira, suspensões com eixos rígidos e feixes de molas. Mas o Volkswagen, com motor traseiro refrigerado a ar, carroceria aerodinâmica e suspensão independente por barras de torção, era radicalmente diferente disso.

Trazia conceitos revolucionários que estavam em voga entre os engenheiros austro-húngaros da época — e, pela primeira vez, foram reunidos em um modelo prático e popular, para produção em massa. Cada vinco da carroceria, cada material usado, casa solução técnica… tudo foi pensado e testado “fora da caixa”, como se diz hoje.

Além de ser “o diferente”, o Fusca virou um mito por seu papel histórico, resistindo às cambalhotas que o mundo deu ao longo do século XX. Encomendado pelo governo de Hitler, o carro (rebatizado de KdF-Wagen) deveria ser pago em suaves cotas em uma espécie de álbum de selos ou figurinhas. O povo alemão pagou, mas não levou…

Em vez disso, o “carro do povo” virou jipe militar durante a Segunda Guerra Mundial e teve sua fábrica bombardeada. Com a derrota dos nazistas, fabricantes ocidentais poderiam ter ficado com o projeto, como despojo de guerra — porém, esnobaram o modelo. Os norte-americanos capturaram a fábrica mas não a quiseram. Quem salvou a empresa foram militares britânicos, mais para manter a faminta população local ocupada do que para obter lucro. 

Mais tarde, os militares britânicos puseram o executivo alemão Heinrich Nordhoff na administração da fábrica e entregaram a empresa ao governo da Baixa Saxônia, estado onde fica Wolfsburg. A partir daí, a Volkswagen passou a ser o símbolo maior do “milagre alemão”, a reconstrução do país no pós-guerra.

Um encontro de Fuscas em Interlagos

Foto de: Motor1 Brasil

Um encontro de Fuscas em Interlagos

A primeira fábrica da VW fora da Alemanha foi no Brasil, que vivia o entusiasmo do nascimento de sua indústria automobilística, na década de 1950. Em pouco tempo, nossas ruas se transformaram em um mar de Fuscas — o modelo mais vendido do país por 23 anos consecutivos (de 1959 a 1982). Em 1986, sua produção em São Bernardo do Campo foi encerrada — mas, em 1993, surpresa: o Fusca voltou a ser fabricado brevemente, por sugestão do presidente Itamar Franco, dando início à onda dos carros populares que dobrou a produção automobilística nacional em apenas cinco anos.

Nos Estados Unidos, o prático e racional besouro também foi uma febre e, ao longo dos anos 60 e 70, todos os grandes fabricantes tiveram que inventar carros compactos para tentar concorrer com a VW. Nada menos que 4,6 milhões de “Beetles” foram vendidos nos EUA (importados da Alemanha).

No México, o VW Sedan começou a ser produzido em 1967. Logo foi apelidado de Vocho e se tornou o carro mais querido dos mexicanos. No trânsito da capital do país, eram onipresentes os táxis pintados de verde e branco. Sua produção só foi encerrada em 2003 — sete décadas após o modelo ter sido projetado na Alemanha! Com o New Beetle e o Beetle, a VW ainda tentou pegar carona no carisma do besouro original usando a plataforma do Golf, mas a brincadeira retrô logo cansou.

No México, foram produzidos 1,7 milhões de “Vochos”. No Brasil, foram fabricadas 3,3 milhões de unidades. No total, foram feitos 21,5 milhões de Fuscas, superando o recorde histórico do Ford Modelo T. 

Todas as gerações do VW Gol

Foto de: Volkswagen

Todas as gerações do VW Gol


Gol de placa

Parecia impossível que outro VW conseguisse bater os recordes de vendas do Fusca no Brasil. Mas Gol mostrou que era o novo rei do pedaço. 

A gênese do Gol começa com Rudolf Leiding, presidente da VW do Brasil entre 1968 e 1971, que liberou a criatividade de sua equipe de projetistas no país. Antes contidos pela matriz, brilhantes profissionais como Marcio Piancastelli, José Vicente Novita Martins (Jota) e George Yamashita Oba ganharam carta branca para desenhar modelos por aqui.

Leiding, contudo, logo voltou para a Alemanha, onde se tornou presidente mundial da empresa e deu um cavalo de pau no desenvolvimento dos novos Volkswagen europeus. Em vez de motores traseiros “a ar”, como rezava a tradição da marca desde os tempos de Ferdinand Porsche, os VW para as massas passariam a ter motores dianteiros, refrigerados a água, derivados de projetos Audi (divisão que já havia sido comandada por Leiding).

Enquanto a Brasilia, feita sobre a base do Fusca, estreava em nosso mercado (1973), a matriz alemã preparava os lançamentos do Golf (1974) e o Polo (1975). Ficava mais evidente do que nunca a defasagem entre os projetos daqui e os de lá.

Antes de deixar a presidência da VW mundial, em 1975, Leiding fez um pedido à filial da Via Anchieta: projetar um modelo com motor dianteiro, aproveitando a base do Passat.  Inicialmente, seria um esportivo — uma espécie de Scirocco brasileiro. A ideia não foi adiante por causa da crise do petróleo, mas abriu caminho para o projeto de um carro popular. O design externo foi feito inicialmente pela equipe de design da Alemanha, enquanto a parte interna era do ateliê de Giorgetto Giugiaro. Coube à equipe brasileira, liderada por Piancastelli, juntar as duas propostas e finalizar os trabalhos daí por diante.

E, assim, nasceu o Gol, inicialmente equipado com o motorzinho VW “a ar” 1300, mas com uma ventoinha diferente e outras alterações para ser montado na dianteira. Demorou para o modelo conquistar o público. Dizem até que a VW teve que matar a Brasilia para evitar a concorrência interna.

Gol GTi tem como pano de fundo móveis do Zanine e esculturas do Krajcberg (Foto - Jason Vogel)

Foto de: Motor1.com

Gol GTi tem como pano de fundo móveis do Zanine e esculturas do Krajcberg (Foto - Jason Vogel)

Em 1987, porém, já com motor refrigerado a água e uma família formada (Voyage, Parati e Saveiro), o Gol tornou-se o campeão de vendas no Brasil e assim continuou por 27 anos ininterruptos, até 2014.

Produzido ao longo de 43 anos (1980 a 2023), o Gol se transformou com o passar do tempo. Suas versões esportivas com bancos Recaro e rodas snowflake foram sonho de consumo nos anos 80, o GTi foi um dos pioneiros da injeção eletrônica no país, veio uma segunda geração do Gol (G2) com linhas mais arredondadas e a opção de quatro portas, e o modelo ganhou uma plataforma inteiramente nova, com motor transversal, em 2008 (G5).

Ao todo foram produzidas 8,5 milhões de unidades, sendo que 1,5 milhão delas foram vendidas para 65 países. Assim o Gol se tornou o carro mais vendido no Brasil em todos os tempos, bem como o nacional mais exportado. São recordes difíceis (para não dizer impossíveis) de serem batidos em uma época de sucessos fugazes.

Brasilia

Brasilia


Tera = Brasilia

O Tera não está à altura do Fusca nem do Gol. Para começar, é um ótimo trabalho de design feito a partir de uma plataforma já existente, sem nenhuma solução realmente inédita ou genial. Em tempos de transição energética (e bem na semana em que a VW da Europa mostra as primeiras imagens do subcompacto elétrico ID.Every1), o Tera vem com a arquitetura MQB A0, que já é usada há 8 anos e ainda sequer foi preparada para a eletrificação.

Se for compará-lo com algum modelo icônico da VW do Brasil, o mais apropriado seria lembrar da Brasilia — que tinha carroceria com design 100% nacional montada sobre uma mecânica já mais do que testada e conhecida.

No caso da Brasilia, foram nove anos em produção (1973-1982), com 928 mil unidades vendidas no país. Contando com o mercado externo, mais de 1 milhão de unidades foram fabricadas. E o modelo chegou a ser montado no México (tanto que era o carro do Seu Barriga, no seriado “Chaves”...) e na Nigéria (onde foi rebatizada de Igala). 

Não há qualquer demérito isso: a Brasilia fez um enorme sucesso de vendas tanto em nosso mercado quanto em países da América Latina e da África — igualzinho a VW planeja para o Tera. Daqui a uns dez anos, releia este texto para ver se acertamos na previsão.

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