Desde sua fundação em 2009, a Uber instigou uma revolução no transporte, espalhou seu modelo de negócios disruptivo para uma variedade de setores e se tornou uma das empresas de tecnologia privada mais valiosas do mundo. Mas a única coisa que não conseguiu fazer foi obter um lucro consistente.
Então, há sete meses, a empresa —agora listada em Bolsa— reportou 1,1 bilhão de libras (cerca de R$ 8 bi) em lucros operacionais anuais, o primeiro de todos os tempos. Isso era algo que os investidores vinham clamando há muito tempo.
O CEO Dara Khosrowshahi chamou isso de um "ponto de inflexão" na história da Uber. Uma empresa outrora assolada por disputas com reguladores e acusações de cultura tóxica e até mesmo roubo de segredos comerciais, havia virado a esquina. Era a prova de que a Uber poderia "gerar um forte crescimento lucrativo em escala", anunciou Khosrowshahi.
Agora a questão é como manter isso. Khosrowshahi, que assumiu em 2017, trouxe a empresa à lucratividade operacional focando em seu negócio principal, cortando custos e se desfazendo de experimentos, incluindo a unidade de veículos autônomos. Mas, para a Uber continuar crescendo, a empresa precisará continuar conquistando clientes.
Voos, trens, scooters, triciclos e até iates estão entre os modos de transporte disponíveis aos usuários. Através de seu segundo aplicativo, o Uber Eats, lançado em 2015, os compradores podem pedir de tudo, desde refeições até mantimentos e bebidas alcoólicas tarde da noite.
O braço focado em negócios, o Uber Direct, é pequeno, mas está crescendo. Seus entregadores agora transportam mercadorias em nome de grandes marcas, incluindo Sephora, Walmart, Apple e McDonald’s nos Estados Unidos, e supermercados como Tesco no Reino Unido.
Alguns apoiadores esperam que essa lista crescente de serviços possa produzir algo semelhante a um "aplicativo para tudo", como o WeChat da China, que permite aos usuários desde pagamentos até mensagens, jogos e muito mais.
Os investidores "estão procurando por esse tipo de super aplicativo no ocidente há muito tempo, o que tem sido retratado principalmente como uma conquista chinesa", diz Bill Gurley, um dos primeiros investidores da Uber.
Khosrowshahi proclamou em 2019 proclamou que queria que a Uber fosse o "sistema operacional para a sua vida cotidiana" e reafirmou esse objetivo ao FT. Para ele, a Uber deve ser a "escolha padrão para o movimento de pessoas e coisas". No entanto, em vez de um "super aplicativo", a empresa está "construindo três", ele diz — Uber, Uber Eats e a plataforma Uber Driver para entregadores e motoristas.
Mas a concorrência continua extremamente acirrada. Rivais como Lyft, Bolt e DoorDash estão promovendo esquemas de adesão na batalha por clientes. A ênfase na entrega também coloca a Uber em uma competição cada vez mais direta com a gigante do comércio eletrônico Amazon.
Todas as empresas estão "claramente em rota de colisão", diz Youssef Squali, principal analista de internet da Truist Securities.
Khosrowshahi está otimista quanto à comparação. "A tecnologia da Uber pode permitir que varejistas de todos os tamanhos concorram com a Amazon", diz ele. "Enquanto eles são os líderes globais em comércio eletrônico, acreditamos que a Uber pode ser a líder global em comércio local." A Amazon recusou-se a comentar.
No entanto, alguns têm dúvidas sobre a amplitude e a escala dessas ambições. "A Uber está tentando fazer muita coisa. Isso será prejudicial para a marca ou para a capacidade deles de executar?" questiona um consultor de uma empresa concorrente.
O primeiro ano de lucratividade operacional anual da Uber seguiu uma pressão implacável para reduzir custos, o que incluiu a demissão de um quarto da equipe durante a pandemia e a venda de negócios não essenciais.
Enquanto isso, o número de pessoas que usam os serviços da Uber tem crescido: o número de usuários ativos mensais em todo o mundo saltou de 45 milhões no final de 2016 para mais de 150 milhões até meados de 2024.
Rivais como Deliveroo, Just Eat Takeaway e Delivery Hero, por sua vez, ainda não relataram um ano completo de lucratividade operacional como empresas listadas.
Agora, a Uber parece estar novamente em uma tendência expansionista. A empresa lançou novos produtos, incluindo uma assinatura com desconto para estudantes universitários e a criação de contas para adolescentes que permitem que suas viagens sejam acompanhadas em tempo real por um adulto.
A empresa também está promovendo produtos de transporte mais baratos, como o serviço compartilhado Uber Shuttle, que pode ser reservado com antecedência. Em fevereiro, a Uber disse que estava visando expandir ainda mais em "novos países enormes", incluindo Argentina e Japão.
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As parcerias também têm se proliferado. Recentemente, a Uber assinou acordos com a empresa americana de entrega de mantimentos online Instacart, a fabricante de veículos elétricos BYD e empresas de veículos autônomos.
Embora não queira mais desenvolver veículos sem motorista por conta própria, a empresa visa se tornar a principal plataforma para passageiros que desejam viajar neles, revelando acordos este ano com a problemática empresa de carros autônomos Cruise e o grupo de software de direção autônoma Wayve.
Em setembro, a empresa anunciou que o serviço de transporte autônomo será lançado no início de 2025 em Austin e Atlanta, nos EUA, em parceria com a Waymo.
Dado que os carros autônomos não têm motoristas que precisam ser pagos, a Uber espera que eles se mostrem lucrativos —mas é uma aposta de longo prazo. Os veículos poderiam ser um "negócio de grande escala", mas isso pode estar "a 15 anos de distância", diz o analista da TD Cowen, John Blackledge.
A empresa também está quer expandir seu negócio de entregas. Um serviço de rápido crescimento, embora menos conhecido, é a operação Uber Direct, que oferece entrega de mercadorias quando os compradores fazem pedidos diretamente dos varejistas, em vez de através do aplicativo da Uber.
Enquanto isso, comerciantes estão aproveitando cada vez mais as oportunidades de anunciar no aplicativo, o que lhes permite promover restaurantes e ofertas. Este ano, o negócio de publicidade da Uber alcançou uma taxa de receita anual de mais de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 5,4 bi).
Um elemento importante da estratégia é o Uber One, esquema de assinatura da Uber que abrange tanto a entrega quanto a mobilidade. Seus 19 milhões de membros —que pagam cerca de US$ 10 (R$ 54) para obter vantagens, incluindo entrega gratuita e descontos em viagens e entregas— gastam 3,4 vezes mais por mês do que os não membros.
A Uber frequentemente fala sobre o poder da plataforma. Essa chamada "vantagem da plataforma" foi "um dos principais diferenciais entre a Uber e as empresas de produto único", disseram analistas do Deutsche Bank.
Maior uso pelos consumidores, segundo a teoria, deve significar maior potencial de ganhos para motoristas e entregadores, levando a mais oferta e preços mais baixos, alimentando mais demanda, tudo isso amparado por uma gama crescente de serviços.
Apesar de algum ceticismo, o diretor financeiro da Uber, Prashanth Mahendra-Rajah, disse em fevereiro que havia uma "disciplina" rigorosa governando quais novas ideias de produtos da Uber recebiam luz verde.
Ainda há, indiscutivelmente, espaço para crescimento. Embora o nome da Uber seja agora tão onipresente que se tornou um verbo em muitos países, em média, menos de 10% dos maiores de 18 anos nos EUA utilizam seus serviços de transporte por mês.
Embora a empresa afirme que agora tem mais de 1 milhão de viagens por hora globalmente, entre entrega e mobilidade, o uso em outros mercados importantes é igualmente baixo.
O valor total das reservas na plataforma aumentou 19% ano a ano no último trimestre, uma ligeira desaceleração em relação aos três trimestres anteriores e substancialmente menor do que o crescimento impulsionado pela pandemia visto em 2021 e 2022, que chegou a atingir 114%.
Em fevereiro, a Uber disse que esperava um crescimento no valor das reservas na faixa de "dois dígitos" nos próximos três anos.
Uma questão persistente também é o custo disso tudo para os trabalhadores. Durante anos, ativistas têm pressionado por salários mais altos e melhores condições, e a forma como motoristas e entregadores são tratados e classificados em alguns locais tem sido desafiada por reguladores e tribunais.
Depois que a Suprema Corte do Reino Unido decidiu em 2021 que os motoristas da Uber eram trabalhadores com direito a benefícios, como o salário mínimo, a empresa concordou em reclassificá-los, mas os motoristas ainda não são considerados empregados.
Nos EUA, a Suprema Corte da Califórnia manteve em julho uma decisão histórica que permite ao setor tratar os trabalhadores como contratados independentes. Debates semelhantes têm ocorrido em países como França, Holanda, Suíça e Nova Zelândia.
Os esforços da Uber para reconquistar motoristas após a pandemia ajudaram a aumentar a demanda dos usuários, pois o aumento de oferta reduziu o tempo de espera e os preços. Mas agora, em alguns lugares, "a superlotação está prejudicando todos os motoristas", diz o consultor e motorista Sergio Avedian.
"A Uber diz que haverá mais demanda com taxas mais baixas e você ganhará mais dinheiro. Mas em Los Angeles agora, não consigo ganhar mais de US$ 20 ou US$ 21 por hora antes das despesas". A Uber diz que motoristas na Califórnia têm a garantia de ganhar pelo menos 120% do salário mínimo enquanto estão em viagens, graças à legislação do estado.
Apesar das mudanças legais no Reino Unido, Gavin, motorista da Uber que convive com efeitos da covid longa e não pode trabalhar em tempo integral, diz que a proliferação de aplicativos de transporte tem prejudicado os motoristas.
"Você tem que trabalhar duas vezes mais para ganhar o que costumava ganhar antes. Tenho muita sorte se conseguir cobrir os custos do meu veículo e ainda ter o suficiente para comer no final da semana." A Uber disse que os motoristas no Reino Unido têm a garantia de ganhar pelo menos o salário mínimo nacional enquanto estão em viagens, mas a "grande maioria pode e ganha muito mais".
No ano passado, Khosrowshahi disse que queria expandir o trabalho do Uber Direct com 3.500 marcas para fazer parcerias com "todos os varejistas locais". Além de desafiar rivais imediatos —o DoorDash oferece um serviço equivalente, o Drive— isso coloca o Uber em competição mais próxima com a Amazon.
Embora o Uber Direct provavelmente seja uma pequena fração do tamanho da Amazon (a empresa não divulga suas vendas diretas, mas as vendas líquidas da Amazon superam a receita total do Uber), Khosrowshahi insiste que a empresa tem um caminho a seguir.
Ele diz que a tecnologia do Uber pode permitir que varejistas com "negócios de bairro", que não têm a vasta rede logística ou serviços de entrega da Amazon, compitam com o gigante.
O Uber pode não ter o portfólio global de armazéns e centros de distribuição da Amazon, e seus entregadores provavelmente estarão indo da loja para casas em áreas relativamente urbanas, em vez de locais de difícil acesso, mas isso permite que a operação permaneça leve em ativos.
Analistas dizem que a empresa está bem posicionada para atender à demanda do consumidor de receber tudo, desde mantimentos e itens essenciais para o lar até roupas e eletrônicos, apenas algumas horas após o pedido.
A Amazon, que está se esforçando para aumentar o número de entregas no mesmo dia e no dia seguinte, anunciou recentemente uma série de novos serviços logísticos, incluindo a permissão para varejistas terceirizados usarem sua rede para entregar mercadorias, mesmo que não vendam na Amazon.
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Será que tudo isso resulta em tornar o Uber semelhante a um super aplicativo ao estilo chinês, algo que se torna o principal portal dos consumidores para todos os aspectos de suas vidas?
Até agora, o modelo da Uber é diferente —continuando a operar como três aplicativos distintos (transporte, entrega e o usado pelos motoristas), cada um se expandindo individualmente. "A estratégia ocidental é mais uma família de aplicativos", disse Khosrowshahi em 2021, citando o exemplo dos aplicativos separados do Google, Gmail e Maps.
Apesar do sucesso do WeChat na China, outros super aplicativos asiáticos, incluindo o Grab, com sede em Singapura (no qual a Uber é investidora) e o GoTo da Indonésia, enfrentaram desafios. Após um período expansivo de crescimento impulsionado pela pandemia, no ano passado o Grab e o GoTo foram forçados a cortar empregos e negócios não essenciais, à medida que investidores começaram a exigir lucratividade.
Um investidor global disse ao FT no ano passado que o modelo de super aplicativo ainda não havia "amadurecido o suficiente para oferecer um futuro sustentável. Ainda é uma escolha entre crescimento ou lucratividade."
Um Uber que fosse capaz de entregar produtos de milhares de marcas renomadas poderia plausivelmente desviar alguns compradores da Amazon. Mas os analistas questionam se os consumidores estarão dispostos a pagar regularmente para receber mercadorias em questão de horas —particularmente em um clima econômico mais frio, e especialmente quando o Amazon Prime, que conta com mais de 200 milhões de membros globalmente, oferece entrega rápida gratuita (em alguns casos no mesmo dia).
Nikhil Devnani, analista da Bernstein, se pergunta quão grande é esse público. "À medida que você se afasta dos produtos perecíveis, é mais uma questão de quantas pessoas realmente precisam ou querem isso rapidamente."
Assim como a Amazon, a Uber espera que sua escala e tecnologia —mapeando as melhores rotas para os entregadores, por exemplo— permitam manter os custos baixos, mesmo com mais serviços sendo integrados à plataforma.
Mas enquanto a Uber já é um "super aplicativo" em relação a outros aplicativos nos EUA, argumenta o analista Youssef Squali, se realmente quiser se tornar mais como o WeChat, será um "longo, longo caminho até chegar lá".