A associação entre a expansão das igrejas evangélicas e a atuação de algumas facções criminosas no Rio de Janeiro decerto parece contraintuitiva para muita gente. Uma das explicações mais interessantes do fenômeno está no livro "Traficantes Evangélicos" (editora Thomas Nelson Brasil), que tive a oportunidade de ler em preparação para uma mesa-redonda na Bienal de São Paulo. O que mais me impressionou no livro da teóloga e historiadora Viviane Costa é como esse processo basicamente repete a lógica histórica que vemos no início da Idade do Ferro do Oriente Médio (há cerca de 3.000 anos) ou no mundo pós-romano na Europa há 1.500 anos: a adoção de novos deuses como estandartes de batalha.
É lógico que estou simplificando um bocado a discussão do livro da pesquisadora (cuja leitura, aliás, recomendo vivamente). Mas, em linhas gerais, Costa documenta bastante bem a transição religiosa que acontece em diferentes comunidades pobres do Rio sob influência do crime organizado e do tráfico.
Até mais ou menos o fim dos anos 1990, havia um predomínio, nessas favelas, de uma lógica sincrética do catolicismo e das religiões afrobrasileiras em que imagens de são Jorge (talvez ainda o santo católico mais popular do Rio) e/ou sua contraparte no candomblé, Ogum, bem como terreiros ou centros de umbanda associados a esse culto, eram vistos como forças sobrenaturais protetoras da comunidade (e também da chefia do crime organizado).
A expansão evangélica, inclusive entre membros do tráfico (processo que tem seu auge, por ora, na formação do chamado "complexo de Israel"), tem levado a uma substituição religiosa em que esses símbolos anteriores de poderio espiritual são destronados por uma linguagem e uma simbologia agressivamente purista e "cristã". E há, é claro, uma associação desse novo poderio bélico com o Deus de Israel do Antigo Testamento.
Por um lado, é como se os vitoriosos nesse confronto se enxergassem como sucessores de deuses israelitas guerreiros como David. E a própria vitória em combate é vista como um sinal da benção divina: Deus se mostra poderoso por ser um deus da guerra. No fundo, trata-se também da mesma lógica que levou o imperador romano Constantino ou chefes pagãos como Clóvis, rei dos francos, no mundo pós-romano, a justificarem sua adoção do culto ao Deus cristão.
E, coincidência ou não, tanto nos casos antigos e medievais quanto nos modernos, é um processo que acontece principalmente na tentativa de legitimação de poder num cenário em que o poder do Estado não vale mais ou aonde ele nunca chegou.