Sinal claro de ansiedade com o rápido aumento da dívida pública desde que o presidente Lula assumiu, investidores vêm demandando cada vez mais títulos indexados à Selic, a taxa básica do Banco Central —e menos prefixados, com rendimento estabelecido de antemão— para financiar o governo comprando papéis do Tesouro Nacional.
Em outubro passado, a parcela dos chamados títulos flutuantes (indexados à Selic) chegou a 45,9% do total da dívida pública federal, um aumento de 7,7 pontos percentuais em relação à fatia de 38,2% em dezembro de 2022, antes de Lula assumir.
Numa aposta de que a Selic seguirá em alta, a participação dos papéis prefixados caiu de 27% para 22,2% no mesmo período, assim como os que seguem índices de preços, reduzidos de 30,2% do total da dívida para 27,3%, segundo o último Relatório Mensal da Dívida Pública Federal, do Tesouro.
Na terça (17), enquanto investidores procuravam se desfazer de títulos prefixados com remunerações menores, a taxa da NTN-B de três anos, indexada à Selic, chegou a 8,24%, a maior desde 9 de dezembro de 2008.
Outro dado, da MCM Consultores, mostra que quase metade (48,1%) da dívida pública mobiliária interna está em títulos indexados à Selic e nas chamadas operações compromissadas de até 30 dias, que envolvem a venda e recompra de títulos de renda fixa em prazo curto no mercado aberto —procuradas por investidores em momentos de incerteza.
Na raiz da mudança do perfil da dívida para papéis "selicados" está o forte aumento do gasto estatal no governo Lula. Isto leva a uma trajetória insustentável da dívida pública e à alta do dólar, que reflete a busca por proteção de investidores na moeda americana.
Em 2024, o dólar chegou a saltar 30% ao atingir R$ 6,30. A alta pressiona preços de commodities negociadas no mercado internacional e de produtos importados. A consequência é o aumento da inflação.
Para segurar o dólar e seduzir investidores a continuar comprando papéis do Tesouro, o BC vem aumentando os juros, como fez há alguns dias ao subir a Selic em um ponto percentual e ao prometer dois novos aumentos iguais no início de 2025.
Cada alta de um ponto na Selic mantida por 12 meses infla a dívida bruta em R$ 50 bilhões. Ao fim do ciclo de três pontos anunciado pelo BC, serão R$ 150 bilhões, mais que o dobro do valor de R$ 70 bilhões de economia previstos no pacote de ajuste do ministro Fernando Haddad (Fazenda) anunciado no fim de novembro.
Para especialistas, o governo Lula se equivoca ao não permitir cortes maiores de gastos, já que a situação financeira do país tende a continuar se deteriorando —como demonstra a recente disparada do dólar.
Outro risco apontado é a chamada dominância fiscal, em que o BC perde a capacidade de conter a inflação subindo a Selic. Neste cenário, a alta de juros perde efeito sobre a inflação; e o rendimento pago a quem tem dinheiro aplicado é tamanho que vira demanda, acelerando ainda mais a economia, em vez de contê-la —como seria natural quando o juro sobe.
Para Samuel Pessôa, pesquisador do Ibre-FGV e colunista da Folha, o Brasil ainda não estaria sob dominância fiscal, embora os próximos meses sejam cruciais. Por um lado, diz, os juros podem ter impacto forte em 2025, desacelerando a economia. Por outro, Lula estaria em "modo reeleição", o que pode levá-lo a tentar continuar gastando mais para manter o crescimento.
"A prioridade do presidente não é arrumar o fiscal, é se reeleger. Mas há um limite no que o gasto público pode fazer. Em 2014 [quando a economia entrou em crise sob Dilma Rousseff] o gasto público cresceu 6,5% reais [acima da inflação], e o PIB, apenas 0,5%", afirma.
Marcus Pestana, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão do Senado, também não vê um cenário de dominância fiscal instalado. "Não faria sentido o Banco Central fazer um choque de juros agora se estivéssemos passando por isso."
A IFI projeta que a relação entre a dívida pública bruta e o PIB subirá 12,4 pontos no governo Lula, de 71,7% para 84,1%, algo considerado desproporcional num período sem algo grave ocorrendo, como foi o caso da pandemia.
Para Pestana, enquanto esta trajetória não for interrompida, o mercado continuará demandando juros cada vez maiores para financiar o governo.
"Acho engraçado que lideranças políticas de esquerda falem da má vontade do mercado. Mas, daqui a pouco, o governo é que vai se ajoelhar para o mercado e dizer: 'Por favor, comprem nossos títulos, porque o pecador não são vocês, mas o governo, que gasta demais e precisa de dinheiro’", afirma.
Assim como Pessôa, José Júlio Senna, chefe do Centro de Estudos Monetários do Ibre-FGV, não acredita que o governo se empenhará em ajustar as contas até o fim do mandato e que, por isto, a relação dívida/PIB e os juros seguirão em alta. Ele não descarta um cenário de dominância fiscal à frente.
"O Banco Central agiu com firmeza ao anunciar um aumento forte dos juros. Essa firmeza vai virar o jogo? Minha resposta é que não. Por quê? No DNA dos nossos atuais dirigentes está a história do gasto. Do gasto é vida. Todo o arcabouço fiscal é aumento de gasto. É só nisso que eles acreditam", diz Senna.
"O presidente Lula vai fazer o que tiver ao seu alcance para impedir a desaceleração da economia até o fim do mandato."