Tem romance, humor, música e reviravoltas. Mas o que mais encanta na versão brasileira de "Shakespeare Apaixonado" é o fato de a peça ser uma declaração de amor ao teatro, encenada por um grupo diverso de artistas.
"É uma trupe de atores fazendo uma trupe de atores", disse o diretor Rafael Gomes na fase de audições para escolha do elenco, quando 1.600 pessoas disputaram as vagas.
O espetáculo é uma adaptação do filme de mesmo nome, que deu o Oscar à atriz Gwyneth Paltrow em 1999, ano em que Fernanda Montenegro estava na disputa com a interpretação da inesquecível Dora de "Central do Brasil".
Um dos poucos diretores do país com trânsito constante entre filmes e peças, Gomes optou por uma encenação sem efeitos cinematográficos, um mergulho no modo clássico de fazer teatro.
"O que tem aqui são atores em cima do palco. Essa é a força dessa montagem", diz.
A pluralidade foi um dos critérios para a escolha dos 23 atores, o que resultou em um elenco que mescla jovens e veteranos, brancos e negros, artistas famosos convidados pela direção e outros selecionados nas audições.
"Em um elenco tão grande, seria ilógico não contemplar o máximo de diversidade", afirma o diretor. A dramaturgia pede isso ao retratar uma trupe que une pessoas heterogêneas em relação à idade, origem e perfil físico.
O que não deu para modificar foi a formação majoritariamente masculina do elenco, como acontecia na época do teatro elisabetano.
Rodrigo Simas, um dos protagonistas, interpreta Shakespeare em um período de bloqueio criativo, quando encontra na aristocrata Viola de Lesseps (Carla Salle) a inspiração e o amor sensual.
O ator saiu da caixinha de galã global ao estrelar recentemente o premiado monólogo "Prazer, Hamlet", com texto e direção de Ciro Barcelos, mas revela que Shakespeare está na vida dele desde a infância, quando viu o pai, Beto Simas, atuar na peça "Péricles".
"Lembro da sensação. E minha mãe conta que, quando saí do teatro, disse: parece que eu vivi um sonho", recorda.
Após um curso na TV Globo sobre o poeta e dramaturgo inglês, Simas compreendeu a necessidade de tirar Shakespeare do pedestal. "Ele escrevia para o povo", argumenta.
Há dois anos veio o convite para o monólogo, que já teve quatro temporadas e ainda deve voltar à cena, e, agora, a peça que se passa no século 16.
"Eu estava de mãos dadas com Shakespeare e agora estou misturado a ele. Peço permissão todos os dias para vivenciá-lo", diz.
Na história, Lady Viola ama o teatro, mas é impedida de atuar pelas regras opressoras da época. Ela, então, usa trajes masculinos e até um bigode falso para participar das encenações e driblar a proibição. Shakespeare fica encantado ao ouvir os próprios versos na voz da artista talentosa.
Carla Salle, que já havia trabalhado com o diretor no filme "Meu Álbum de Amores", estava fora do Brasil na fase das audições e fez o teste online para o papel da protagonista feminina. A distância não impediu a conexão entre ela e Simas, em sintonia nas interpretações românticas.
"É uma mulher entre tantos homens, no universo masculino da época. O que, de alguma forma, se reflete até hoje. Nós estamos sempre lutando para que existam mais mulheres nas produções artísticas", afirma.
A ode ao teatro aparece também em Elizabeth 1ª, uma rainha que admirava as artes cênicas e é interpretada por Ana Lúcia Torre. Aos 79 anos, a atriz faz três aparições majestosas, carregando um figurino pesado e a longa experiência nos palcos –são 46 anos no teatro profissional, mais de 70 trabalhos cênicos e audiovisuais, sem nunca parar.
"É uma peça divertida, alegre e, ao mesmo tempo, cria uma tensão", ela afirma sobre o espetáculo baseado no filme.
No ensaio geral aberto ao público, a atriz foi aplaudida em cena aberta na primeira entrada e na saída, o que ela chama de "licença poética" por ter sido a primeira vez que o elenco fez o espetáculo inteiro, sem pausas.
Acostumada a conviver com atores e atrizes mais jovens, Ana Lúcia vê nessa diversidade um aprendizado para os dois lados. "Os jovens trazem a leveza e os mais velhos a experiência. Isso é um jogo que sempre aconteceu e gosto muito."
A veterana chama a atenção para o formato do palco em "Shakespeare Apaixonado", com o público muito próximo e rodeando a cena no 033 Rooftop, localizado no terceiro andar do Teatro Santander.
O cenário remete ao ambiente teatral da Inglaterra elisabetana, com aproveitamento múltiplo das possibilidades oferecidas pelo local, como uso de alçapões e de um balcão para os músicos em cena, além das entradas e saídas dos atores nas laterais, no meio da plateia.
A adaptação teatral é assinada por Lee Hall, dramaturgo e escritor britânico, responsável pelo roteiro de "Billy Elliot", vencedor do Tony Award de melhor texto para musical em 2009.
O espetáculo já foi apresentado com sucesso em Londres, Nova York, Japão e África do Sul.
Durante duas horas e meia e aos olhos do público, o jovem Shakespeare cria o enredo de "Romeu e Julieta" e, depois, a pedido da rainha, escreve "Noite de Reis". Produz parte de sua histórica dramaturgia ao mesmo tempo em experimenta o amor impossível, as dificuldades de ser artista, a poesia da vida real.
No reinado de Elizabeth 1ª, atores, escritores, taberneiros, nobres e plebeus vivem paixões e disputas. Amam e lutam. Estão sujeitos, o tempo todo, às farsas e às tragédias. Porém, é tudo teatro.