Quando "Relatos Selvagens" foi lançado no Brasil, no final de 2014, não foram poucos os críticos brasileiros que o usaram como exemplo da superioridade do cinema argentino sobre o nosso.
Dez anos depois, a discussão já não faz o menor sentido, mas vale a pena voltar ao filme, que agora reestreia nos cinemas após três anos em exibição em São Paulo, até 2017, para ver o que restou de sua verve provocadora, que revelava, na época, algo que o cinema brasileiro, supostamente, seria incapaz de fazer.
Primeiro ponto: claro que o cinema brasileiro não pode fazer coisas que o cinema argentino faz. O contrário também é verdadeiro. Cada cinematografia tem seus percalços, suas medidas de representação, suas ambições e seus cenários a serem criticados. Temos que nos preocupar em fazer o melhor cinema brasileiro possível, não um cinema melhor que o argentino.
Afinal, como medir essas coisas? Público e premiações nunca foram bons critérios de avaliação. E uma avaliação mais cuidadosa só seria possível vinda de alguém que viu todos os filmes produzidos nos dois países num período específico. Mesmo assim, é puramente subjetivo.
Segundo ponto: para ficar bem claro, há talento na direção de Damián Szifron. Algo desse talento está presente também em seu filme seguinte, "Sede Assassina", de 2023, seu primeiro trabalho nos Estados Unidos e o primeiro em inglês. Mas se encontra de forma mais intensa em "Relatos Selvagens", ainda que os equívocos também apareçam de forma mais vistosa.
Temos seis histórias envolvendo revoltas, vinganças, traições, corrupção e protestos. Na primeira delas, que funciona como um prólogo, um piloto junta num mesmo voo todos que o humilharam no passado, para depois jogar o avião contra seus próprios pais, os culpados de todo o seu sofrimento, segundo seu psicanalista, por sinal, um dos passageiros.
Filmes em episódios costumam pecar pela irregularidade. Alguns relatos são melhores que outros, não só pela trama que ensejam, mas eventualmente pelo roteiro, pela direção ou pela interpretação de todo o elenco.
"Relatos Selvagens" também sofre desse mal, ainda que nenhum episódio seja realmente ruim, como também não há episódio muito bom. Todos estão num espaço qualitativo entre o interessante e o bem-sucedido. Todos têm escolhas que me parecem acertadas e escolhas que me parecem infelizes.
Em alguns momentos, o filme parece ter esperteza em excesso, piscadelas para plateias eventuais de shopping centers. Em dois episódios, o primeiro e o último, há um personagem vomitando, por exemplo. É uma das pragas do cinema contemporâneo. No entanto, percebemos que os melhores episódios têm essa esperteza bem dosada.
Vejamos o da estrada, que acentua seu aspecto de desenho animado. Temos um homem com seu carro novo e veloz tentando ultrapassar um outro com o carro velho e lento. Ao ser ofendido na ultrapassagem, o do carro velho passa a atacar o riquinho depois que este foi obrigado a parar por causa de um pneu furado.
Temos então um duelo entre quem não tem nada a perder e quem acha que pode ganhar tudo. Szifron mostra o argentino tosco e o argentino rico e arrogante, duas facetas masculinas ridículas. Talvez esteja aí uma chave para entender o que se passa na Argentina: uma grande nação, refém por vontade própria de um presidente ultraliberal com motosserra. A vida ultrapassa a arte, mais uma vez.
Outro episódio de destaque é o do playboy que atropela e mata uma mulher grávida. Como é filho de um poderoso ricaço, faz-se um acordo para que um empregado assuma a culpa. O investigador desconfia, mas o dinheiro compra tudo —menos a indignação popular.
Szifron conta essa história do ponto de vista dos ricos, o que a deixa ainda mais cruel e revoltante. É o episódio de dramaturgia mais sólida, mais calcado nas interpretações e nos traumas dos personagens. Sugere que nas altas esferas econômicas a compra de pessoas é tão frequente como a de bens de consumo.
O episódio mais fraco é justamente o que tem Ricardo Darín, ator que, sem querer ou planejar, tornou-se para muitos um símbolo da tal superioridade do cinema argentino. Ele não tem culpa, mas a história sádica de um homem maltratado de todas as formas pelo sistema não encontra sua melhor realização e é prejudicada por uma ironia tola no final.
Se temos no filme alguns dos sinais do pior que o cinema deste século nos deu, é necessário afirmar que Szifron, pelo talento de sua direção e pelo risco de algumas escolhas, está muito acima de outros provocadores atuais, como Ruben Ostlund e Yorgos Lanthimos.
Talvez essa reestreia sirva para separarmos os diretores com alguma verdadeira ambição autoral daqueles que só se interessam em afrontar o gosto médio da maneira mais grotesca possível.