"Eles que fugiram de mim", diz Baby no início do filme que leva seu nome, ao ser questionado se havia saído de casa e largado a família. Não é por escolha que o rapaz gay perambula pelas ruas do centro de São Paulo, numa situação de abandono compartilhada com muitos outros jovens como ele.
Wellington –seu nome verdadeiro– começa o filme deixando a Fundação Casa, onde foi parar por um delito qualquer. Ninguém o espera na porta da instituição para menores, tampouco no endereço onde morava com o pai e a mãe. Desamparado, recorre aos arredores da praça da República, ponto de alta voltagem sexual da capital paulista.
Seja pelos bares e boates gays, pelos cinemas pornôs ou pelas esquinas tomadas pela prostituição, aquele espaço de marginalidade acolhe Wellington num momento de agonia. Ali, ele se torna garoto de programa, vendedor de drogas e, também, homem de família, ao conhecer Ronaldo, um michê mais velho com quem cria uma relação passional e, de certa forma, paternal.
Baby não escolhe o nome de guerra à toa. Aos 18 anos, ele percebe que a idade é sua aliada na conquista de clientes e de alguma independência financeira. Em paralelo, cria um tampão para o vazio deixado pela ausência dos pais, tomando Ronaldo, seu filho, sua ex-mulher e a namorada dela como sua nova família.
Também encontra conforto em outras pessoas LGBTQIA+ que, como ele, ficaram sem lar e criaram sua própria configuração familiar. Com eles, faz "voguing" em praças e ônibus e dribla os perigos do centro, incluindo a truculência policial sempre à espreita.
É como se a história de contrastes de Wellington servisse de alegoria para a própria história daquele pedaço caótico de São Paulo. "O que a gente vê dessa região é o que chamam de vazio, degradação, decadência, crime. Mas o filme tenta voltar a sua lente para aquilo que existe de vivo, de dinamismo", diz o diretor Marcelo Caetano, que mora perto das locações.
"Muita gente que chega a São Paulo é acolhida pelo centro, pelas pensões, as quitinetes, os hoteizinhos. E por isso muita gente desenvolve uma relação de afeto por esse espaço, que é de contato de classes, de origens. Tem apartamento cheio de gays solteiros e, do lado, uma pensão. O que eu fiz com o filme foi olhar para a multidão que circula por ali e dar um zoom, contar as histórias dessas pessoas."
Homossexuais, Wellington e Ronaldo saem à caça de clientes em cinemas, saunas e ruas, ora transando juntos, ora separados. Quando voltam para casa, fazem amor, um tipo de sexo diferente daquele performático que têm com outros homens.
Era imprescindível que "Baby" fosse gráfico ao mostrar essas cenas de intimidade. Nada novo para Caetano, diretor do premiado "Corpo Elétrico", que em 2017 também mostrou corpos e amores queer de forma naturalizada, sem moralismo.
"Não são cenas para excitar, elas também trazem problemas. Além de prazeroso, o sexo aqui pode ser desconfortável", diz o diretor. Na primeira vez em que vão para a cama, Ronaldo descobre lentamente as marcas que os maus tratos deixaram no corpo de Wellington, revivendo traumas enquanto seus corpos, nus, se agarram um ao outro.
Percebemos, já ali, que o sexo dos dois vai muito além do orgasmo. Sendo assim, capturá-lo não poderia ser algo mecânico, óbvio. "Filmar o desejo é muito mais difícil do que filmar o sexo, que talvez nem cause mais tanto choque ou excitação [no cinema]. A câmera tem que dançar com os personagens, não pode mostrar tudo."
Com a câmera próxima dos atores, Caetano captura poros, cicatrizes e suor. Mais do que corpos explícitos, ele enfoca os olhares que Wellington e Ronaldo trocam, em momentos nos quais se estabelece uma relação de intimidade e vulnerabilidade muito maior do que a obviedade da nudez.
"Baby" chega aos cinemas depois de muita expectativa e de elogios às atuações de João Pedro Mariano, que vive Wellington, e Ricardo Teodoro, que faz Ronaldo. O filme fez sua première no Festival de Cannes, em maio passado, de onde saiu com o prêmio de estrela em ascensão da Semana da Crítica para o segundo ator. Ganhou troféus em várias outras mostras e, por aqui, levou dois prêmios no Mix Brasil e quatro no Festival do Rio, incluindo melhor filme.
A expectativa é que a trajetória impulsione a carreira nas salas de cinema, principalmente em meio ao momento de orgulho nacional provocado por "Ainda Estou Aqui". Selton Mello e Walter Salles chegaram a citar "Baby" em entrevistas, seguindo a tendência de levantar a moral de outras produções brasileiras ao agradecer pelos mais de três milhões de espectadores que já compraram ingressos para o seu longa.
Lá fora, o interesse por "Baby" também é grande. Pelo menos 20 países já compraram o filme para distribuição local, incluindo Alemanha e França, que promovem o lançamento já em março. Para Caetano, o nicho LGBTQIA+ é grande e, portanto, sempre há interesse por filmes que seguem a temática, não importa onde.
Em seu próximo projeto, ele vai adicionar mais um volume ao cinema queer brasileiro, no que será, nas suas palavras, um estudo da "formação da bicha brasileira". Caetano deve abandonar as ruas de São Paulo e retornar a Minas Gerais, onde nasceu, para filmar o longa no próximo ano. "Agora é entregar o ‘Baby’ e cuidar do novo bebê."