Robôs preservam a revolta que falta a uma humanidade letárgica em livro futurista

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Os deserdados e perseguidos é que farão as transformações no mundo. Nem que estes sejam replicantes, para usar o apelido dos robôs humanoides popularizados por Philip K. Dick em "Blade Runner" e centrais no romance "Utopia 3: Últimas Notícias do Século 25", de Inácio Araujo.

Afinal, num futuro em que o mundo vive sob uma só nação gerida por um CEO e por corporações que adquirem até os "naming rights" de cidades, nem só os humanos serão oprimidos. Em vez de serem as vilãs, as máquinas, aqui, tentarão se rebelar diante de uma humanidade dopada por pílulas e telões. Em um mundo sem memória, só elas se lembram desse mundo remoto, onde havia livros, pintura, escrita, cinema, debates políticos e paixões.

"Não fui consultar o que os especialistas acham do futuro. Quando você escreve, está pensando o presente", diz Araújo, de 76 anos, que rejeita o rótulo da ficção científica. "Nunca fui muito próximo do gênero. Mas houve um momento de descrédito da ficção, taxada como algo que não aconteceu. Não existiu Capitu, Madame Bovary? Começaram a publicar qualquer coisa que saía na internet que fosse experiência vivida, baseada em fatos reais."

Assim, o crítico de cinema da Folha e escritor bissexto, premiado pelo livro "Casa de Meninas" em 1985, decidiu "chutar o balde" e imaginar como seria uma Terra que chegou a um aparente melhor dos mundos, após um longo período de guerras.

Claro, um mundo ideal para quem se submete às regras de uma sociedade meritocrata, que aboliu o prazer e resolve tudo na base de remédios, varrendo seus párias para detenções e subterrâneos enquanto busca colonizar o planeta Utopia 3 do título. Não à toa, a eficiência dos designers e a ciência da medicina, aspectos também centrais na máquina nazista, são os principais culpados dessa realidade.

O estopim não foi nada de imaginário —partiu da indignação de Araújo com políticas dos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, como a reforma da Previdência, a destruição da natureza e das terras indígenas.

"Utopia 3", nesse sentido, traz à lembrança muito da gramática da ficção especulativa e das invenções de Jorge Luis Borges —um dos favoritos do escritor— enquanto o acaso guiava o turbilhão de ideias condensadas na obra, feita ao longo da pandemia até o ano passado.

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"Na introdução eu quis lembrar o 'Crônicas Marcianas', do Ray Bradbury, depois seguir para algo mais de aventura. Há uma travessia, onde remeto a 'Os Sertões'. No final, queria imitar 'Esperando Godot', mas eu tentava e só saíam duas páginas", diz o autor. "Topei com uma biografia do Lévi-Strauss e fiquei encantado por um capítulo sobre os indígenas. Aí aconteceu."

Todo esse é universo é apresentado, como anuncia a epígrafe, pelos escritos de um personagem sem nome, que anota tudo o que sabe e vê numa trajetória que vai da periferia de ShellBras —a antiga Brasília— aos confins de um planeta devastado pela crise climática e recheado de arquétipos, como empresários lunáticos, generais golpistas e astronautas messiânicos.

Já os autores políticos ganham citações inteiras durante a jornada. Como este mundo não tem mais leitura ou escrita, com tudo televisionado na "Grande Tela", os registros do passado estão perdidos em pilhas de lixo ou nos circuitos de antigos robôs. Um, por exemplo, é alimentado com as ideias de pensadores anarquistas; outro declama o trotskista Juan Posadas, cuja obra excêntrica ia de paralelos entre comunismo e ufologia a crítica de arte.

"Posadas é o líder de esquerda mais descreditado do mundo", diz Araújo sobre o argentino. "Ele falava: 'Os Estados Unidos e a Rússia estudam ovnis. E se existe outra civilização que vai chegar até nós, ela é muito mais desenvolvida. Obviamente, ela é comunista.' Aí entram os delírios, que condizem com o que ele acreditava. Mas ele também escreveu muito sobre arte revolucionária de maneira lúcida. Ele achava Beethoven e Van Gogh o máximo."

Araújo sempre teve uma queda por gente que sai do figurino —por exemplo, acabou empregado no Jornal da Tarde, nos anos 1970, após sair pelo centro de São Paulo ao lado de um rapaz fascinado por alienígenas que conheceu por acaso.

É algo que se reflete numa preferência estética, inclusive no cinema, bastante presente pelas páginas de "Utopia 3". "Hoje eu gosto mais do 'Alphaville' do Godard que do '2001: Uma Odisseia no Espaço' do Kubrick. Você vai ver, quem é o grande cérebro no filme do Godard? É um ventilador, pomba! E funciona", diz o autor. "Parto desse princípio: se você é genial, pode aborrecer as pessoas. Como eu não sou, só quero que se divirtam lendo."

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