Raio-X na Amazônia revela vestígios de colônia portuguesa do século 18

há 1 dia 3

Conforme a tempestade se aproximava, homens avançavam na floresta, procurando pistas que pudessem desvendar um mistério centenário.

"Precisamos ir mais 50 metros", afirmou o arqueólogo Carlos Zimpel Neto numa manhã de janeiro, olhando para seu tablet, ignorando o estrondo do trovão. "Depois um pouco para a esquerda, depois um pouco para a direita."

Largou o tablet e, seguido por mosquitos, entrou numa área que um dia revelara uma das descobertas arqueológicas mais notáveis da Amazônia: uma vasta fortaleza militar portuguesa no rio Guaporé. O avistamento em 1913 da fortaleza, que havia sido abandonada por Portugal, resultou numa pergunta à qual historiadores e arqueólogos tentam responder desde então.

Onde estava o resto?

Mapas e registros históricos mostraram que a colônia portuguesa do século 18, que em seu auge abrigava pelo menos mil pessoas, se estendia muito além da fortaleza. Teria existido uma cidade chamada Lamego, com vilas militares e igrejas. Mas a densa vegetação ao longo da fronteira do Brasil com a Bolívia ocultara tudo —até agora.

Usando uma tecnologia a laser conhecida como lidar, Zimpel e sua equipe chegaram à colônia portuguesa perdida, deparando-se com um intrincado sistema urbano de canais, estradas, fortificações militares e restos de estruturas de pedra.

O feito, anunciado em outubro, foi o mais recente exemplo de como o lidar está inaugurando uma nova era de descobertas na Amazônia. O sensor a laser, que pode ser montado em um avião ou drone, deu aos cientistas o equivalente a visão de raio-X, permitindo-lhes perfurar o denso dossel e revelar os segredos da maior floresta tropical do mundo.

Do alto, apenas uma vegetação densa é visível ao redor do Forte Príncipe da Beira e de uma vila próxima.

Os restos da colônia estavam escondidos. Então veio o lidar.

As imagens produzidas com a tecnologia se alinharam com um mapa desenhado por um espião espanhol em meados de 1700, mostrando estradas, canais e uma segunda fortaleza.

As paredes de pedra de uma terceira instalação militar, conhecida como labirinto, serviram de abrigo para um batalhão português e uma bateria de canhões.

As descobertas se estendem além do Brasil.

Cientistas usaram lidar na Bolívia para revelar vestígios de "urbanismo que não havia sido descrito anteriormente na Amazônia", relatou um artigo de 2022 publicado na revista Nature, incluindo evidências de pirâmides de 20 metros de altura e um elaborado sistema de gestão da água.

No Equador, o lidar ajudou a localizar "aglomerados de plataformas monumentais, praças e ruas" que rivalizavam com os assentamentos maias no México e Guatemala, de acordo com um estudo publicado no ano passado na revista Science.

As revelações têm desafiado teorias de longa data sobre a história da Amazônia. Cientistas sustentavam que ali o solo não era rico o suficiente para sustentar o tipo de sociedades agrárias complexas encontradas em outras partes da América Latina. Acontece que as evidências estavam lá o tempo todo, mas pesquisadores simplesmente não dispunham de ferramentas para vê-la.

"Este é o momento de nosso maior avanço e compreensão da floresta", disse Luiz Eduardo Oliveira e Cruz de Aragão, pesquisador de sensoriamento remoto no Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

Zimpel, seguindo um mapa digital construído com base em imagens de lidar, saiu da floresta. Ele olhou através de uma clareira onde a cidade de Lamego uma vez se estendia. A maioria de suas estruturas, feitas de barro e folhas de palmeira, desintegrou-se há muito tempo.

Mas lá estava a fundação quebrada de uma igreja portuguesa, com pedaços de telhado espalhados; também havia pedaços de cerâmica quebrada, que, estima-se, teriam sido feitas de 1.200 a 2.000 anos atrás. Eles foram forjados por membros de uma sociedade indígena avançada, segundo Zimpel.

O arqueólogo diz acreditar que eles também tenham sido responsáveis por grandes geoglifos circulares na área —aparentemente visíveis agora apenas através da análise de lidar— que antecederam em muito os portugueses.

A tecnologia, de acordo com Zimpel, não apenas expõe a colônia perdida. Também ajuda a reescrever a história humana da floresta.

É como se estivéssemos levantando um tapete. Damos um puxãozinho e espiamos o que está embaixo

Arrancando o topo das árvores

A dificuldade de se investigar a Amazônia tem atormentado exploradores por séculos, levando muitos à beira da loucura ou à morte.

Theodore Roosevelt, que a percorreu no início dos anos 1900, chamou-a de "terra de possibilidades desconhecidas". Para o aventureiro britânico Percy Fawcett, que desapareceu enquanto caçava uma cidade perdida, ela era era o "último grande espaço em branco do mundo".

O Lidar está preenchendo cada vez mais o espaço em branco.

Inventado na década de 1960 e primeiro aplicado no desenvolvimento de tecnologias aeroespaciais, ele mede a distância até um objeto emitindo um laser e, em seguida, cronometrando quanto tempo leva para receber o reflexo.

Quando acoplado a um avião —ou, mais frequentemente nos dias de hoje, a um drone—, ele pode coletar milhões de pontos de dados para renderizar uma imagem topográfica extraordinariamente precisa da paisagem abaixo, alcançando em semanas o que antes levaria uma vida inteira.

Como ele funciona?

Um avião ou drone com um sensor lidar voa sobre uma área. O sensor mede a distância até um objeto disparando um laser e, em seguida, cronometrando quanto tempo leva para receber o reflexo.

O sensor emite tantos pulsos —cerca de 2.000 por metro quadrado— que alguns filtram através do dossel da floresta, resultando em conjuntos de dados ricos que os pesquisadores chamam de "nuvens de pontos".

Simulada em um computador, a imagem é em camadas e tridimensional.

Tudo o que os cientistas têm de fazer para analisar o leito da floresta amazônica é remover o dossel.

Eles podem então ver com clareza o que está sob as árvores, obtendo um vislumbre vívido do passado.

"É como se estivéssemos levantando um tapete", disse Eduardo Neves, que dirige o Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. "Damos um puxãozinho e espiamos o que está embaixo."

Nos últimos 15 anos, conforme os avanços tecnológicos reduziram os custos, o lidar remodelou a arqueologia moderna, levando à descoberta de cidades perdidas da América Central ao Sudeste Asiático.

E nessa parte remota do Brasil, onde portugueses tentaram subjugar tanto a Amazônia quanto espanhóis, Zimpel encontrou mais do que poderia ter imaginado.

Explorando o labirinto

A jornada de Zimpel começou no verão de 2016, quando partiu em uma longa viagem, interessado em visitar a Real Forte Príncipe da Beira omo turista. Ele viajou por Rondônia, fortemente desmatado, até chegar a um trecho preservado de floresta no final de uma estrada. Lá, surgindo da vegetação impenetrável, estava a estrutura em ruínas.

Perto dela havia um quilombo. Um de seus habitantes era Elvis Pessoa, presidente da associação comunitária e guia turístico local, que contou a Zimpel a história de seu povo.

No século 18, conforme as tensões aumentavam entre portugueses e espanhóis sobre quem controlaria a região, Portugal construiu sua maior fortaleza colonial. Para concluir o trabalho, segundo Pessoa, milhares de africanos escravizados foram transportados para a região em barcos a vapor.

Quando as potências coloniais finalmente resolveram sua disputa territorial, o posto militar perdeu sua importância estratégica. Os portugueses, sem dúvida gastando uma fortuna para manter a colônia, abandonaram tanto a fortaleza quanto os escravos que a construíram.

Enquanto conversavam, Zimpel mencionou que era professor de arqueologia na Universidade Federal de Rondônia. Isso chamou a atenção de Elvis, que disse que havia outras estruturas escondidas na floresta, agrupadas em torno de um local peculiar que os locais chamavam de labirinto. Ele perguntou se o professor gostaria de dar uma olhada.

No começo, Zimpel hesitou. Mas, na floresta, ele se deparou com visões diferentes de tudo que havia testemunhado em sua carreira: linha após linha de paredes de pedra de cinco metros de altura; um arco de porta solitário; a base de pedra de uma estrutura retangular.

Zimpel começou a escavar, primeiro com Elvis, depois com o irmão dele, Santiago, após a morte do líder da comunidade, em abril de 2023. Enquanto isso, o pesquisador examinava mapas esboçados pelos portugueses e espanhóis em meados de 1700. Ele começou a suspeitar que o que tinha visto era a colônia portuguesa perdida. Mas não podia ter certeza. Não sem o lidar.

Em 2022, seu colega de arqueologia, Neves, recebeu uma bolsa da National Geographic Society para usar a tecnologia para estudar a floresta. Neves, coordenador de um consórcio acadêmico chamado Amazon Revealed, queria explorar pelo menos 50 locais. Zimpel já tinha um lugar em mente.

No ano seguinte, após dez dias de sobrevoos, ele chegou à sua resposta. As imagens de lidar quase correspondiam perfeitamente aos mapas dos anos 1700.

"Encontramos", disse Zimpel.

História ameaçada

Assim que as ruínas foram descobertas, no entanto, elas pareciam estar prestes a se perder novamente.

O assentamento português, como muitos vestígios da antiguidade amazônica, está localizado no que é conhecido como o arco do desmatamento, uma faixa que percorre o sul da floresta e apresenta grande parte de sua destruição. Recentemente, enquanto um número histórico de incêndios queimava a Amazônia, com particular ferocidade no arco, a floresta que protegia as ruínas foi consumida pelas chamas.

Os moradores do quilombo, cercado por fazendas de gado e plantações de soja, disseram acreditar que os incêndios foram provocados intencionalmente para limpar as terras.

"Nunca pensamos que o fogo chegaria tão perto", disse Nucicleide da Paz Pinheiro, que se tornou presidente da associação local após a morte de Elvis. "Ele queimou 80% da nossa floresta."

Meses depois, em janeiro, Zimpel foi se encontrar com os moradores do quilombo. Conversou com a mãe de Elvis e, então, voltou à floresta para ver o que restava das ruínas. Mas ele também queria ver o que mais poderia encontrar. Com cada descoberta adicional, ele poderia solicitar às autoridades a preservação legal de mais uma parte da floresta como um sítio arqueológico.

O dano foi imenso, mas não tão ruim quanto Zimpel temia. Olhou para baixo em seu tablet e analisou o mapa criado pelo lidar, que mostrava sinais de atividade humana histórica bem à frente. Ele encontrou uma ravina rasa que corria em linha reta perfeita. Então outra a uma curta distância. Ao lado de uma delas havia um grande edifício de pedra. Estava coberto de lama e vegetação, porém aparentemente intocado pelo fogo.

O pesquisador deu um passo para trás para admirá-lo. "Essa é uma das maiores estruturas que já vimos. Há muito mais casas aqui do que pensávamos."

Enquanto os mosquitos o cercavam, Zimpel consultou seu mapa mais uma vez e desapareceu de novo na floresta.

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