Na missão espacial Blue Origin, que saiu da Terra nesta segunda-feira (14) rumo à linha de Kármán, marco a 100 km da linha do mar que define o limite internacional entre o espaço e a atmosfera terrestre, levava apenas mulheres —mas, entre elas, apenas uma engenheira, Aisha Bowe.
A tripulação da primeira missão totalmente feminina dos últimos 62 anos teve a bordo a cantora pop Katy Perry, Gayle King, jornalista e apresentadora do programa CBS This Morning, Amanda Nguyen, fundadora da ONG Rise, Kerianne Flynn, produtora de cinema, e a jornalista Lauren Sanchez, noiva de Jeff Bezos, bilionário à frente da Amazon —e por trás da expedição.
Em 1963, na última missão apenas com mulheres, a cosmonauta soviética Valentina Tereshkova deu 48 voltas na Terra ao longo de três dias.
A empreitada desta segunda foi encabeçada pela Blue Origin, empresa aeroespacial de Bezos, e as mulheres tripularam o foguete New Shepard, uma aeronave de 18 metros. O voo durou cerca de dez minutos, durante os quais as mulheres puderam vivenciar a sensação de gravidade zero.
A nave partiu do deserto do Texas, nos Estados Unidos, de onde foram feitos outros lançamentos da companhia. A Blue Origin já fez dez viagens tripuladas, algumas com celebridades, como o próprio Bezos, e o ator Shatner William, que interpretou o capitão Kirk na série de ficção científica "Star Trek".
Na Terra, o público que acompanhava a viagem era tão estrelado quanto a tripulação. Na base estavam a socialite Kris Jenner, a mãe do clã Kardashian-Jenner, a apresentadora de TV Oprah Winfrey —que chorou na decolagem—, e o ator Orlando Bloom, marido de Katy Perry. O próprio Bezos acompanhou as tripulantes até a nave e a missão foi compartilhada numa live com a locutora esportiva Charissa Thompson.
Segundo Rosana Araujo, professora do departamento de matemática da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e PhD em engenharia espacial, a iniciativa é importante como exemplo de mulheres nas ciências e na engenharia, apesar de serem majoritariamente celebridades desvinculadas da área.
"As exatas ainda têm poucas mulheres", diz. "Qualquer iniciativa que volte os olhos para as mulheres na área espacial e nas exatas é importante."
Segundo dados divulgados pelo ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) nas redes sociais, a procura de mulheres pelos cursos da instituição tem crescido. Em 2014, eram pouco mais de 20% do vestibular. Em 2024, passaram a 30,4% dos candidatos.
O instituto vetava a presença de mulheres nas suas provas de admissão até 1996. No primeiro ano do vestibular, seis foram aprovadas para 120 vagas disponíveis. Em 2000, só duas delas se formaram.
Para Araujo, a missão dá às meninas mais jovens munição para seus sonhos. Ela diz que o fato de elas poderem se enxergar na função é um estímulo à entrada na área.
"Mesmo sendo famosas, o fato de levantar um questionamento sobre uma tripulação toda feminina de certa forma já pode colaborar", diz.
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Mayana Zatz, bióloga molecular e docente na USP (Universidade de São Paulo), compartilha do pensamento. Ela, que foi pró-reitora de pesquisa da instituição de 2005 a 2009, vê nas tripulantes da Blue Origin um exemplo para que as meninas possam se ver nas exatas.
"Acho importante fazer publicidade de que as mulheres podem ser cientistas tão boas quanto os homens", diz. "Se você pede para uma criança desenhar um cientista, ela vai desenhar um homem com cabelo bagunçado, estourando tubos de ensaio cheios de fumaça."
No entanto, as meninas que olharem para a missão Blue Origin vão ver mulheres magras, com cabelos e maquiagem impecáveis, trajando macacões justos de neoprene.
A roupa é obra de Sanchez junto à grife Monse. Ao jornal The New York Times, ela disse que usou trajes esportivos como referência —já que as roupas espaciais têm modelagem majoritariamente masculina. Em 2019, a Nasa cancelou uma missão tripulada só de mulheres por não ter trajes suficientes no tamanho adequado. Sanchez afirmou, ainda, que quis dar um ar "perigoso" e "sexy" ao visual.
Araujo vê um problema nisso. "Esse é um ponto negativo. É uma imagem da mulher como um produto e não é algo necessário. As vestimentas masculinas são bem diferentes."
Para ela, é mais uma ocasião em que a imagem feminina é usada com apelo das "mulheres bonitas e bem-vestidas".
Zatz dá outro ponto de vista para a questão. Ela diz que é importante passar às meninas a mensagem de que cientistas podem ser vaidosas também. "Não precisa andar de coque, terninho e óculos de armação tartaruga", afirma.
A crítica cultural Amanda Hess diz, no New York Times, que a roupa é um dos elementos que tira a seriedade científica da operação, vista por ela como uma grande obra de marketing. Para Hess, a missão indica que mulheres podem, assim como titãs da indústria tech, fazer turismo espacial.