Hervé Guibert passou um bom tempo montando a cena. Queria que a fotografia de sua mãe capturasse não apenas sua forma mas também sua essência. Queria que a imagem a fixasse no tempo, impedindo que envelhecesse.
O clique foi delicioso. Na hora da revelação, porém, uma decepção: a fotografia saiu em branco. Guibert não tinha encaixado direito o filme na máquina, que usava naquele dia pela primeira vez. Só registrou o vazio.
O artista francês conta essa história na abertura de "A Imagem Fantasma". O texto causou impacto quando saiu na França em 1981. Seguia inédito no Brasil, assim como grande parte de sua obra.
Há agora um certo movimento de redescoberta. "A Imagem Fantasma" acaba de chegar pela Editora 34. A Todavia lançou "Ao Amigo que Não me Salvou a Vida". A Nós publicou "Hervelino", um livro sobre o artista.
A aparição dessas três obras ajuda a construir, de uma só vez, um retrato complexo de Guibert, um dos fotógrafos e escritores franceses mais fascinantes da segunda metade do século 20. Revelam diferentes facetas dele.
Guibert nasceu em 1955. Foi um jovem prodígio, publicando seus primeiros livros já nos anos 1970. Em 1984, ganhou um prêmio César —a principal distinção do cinema francês— pela coautoria do filme "O Homem Ferido".
É desse período de ascensão o texto de "A Imagem Fantasma", que saiu em 1981. É uma coleção de ensaios sobre a arte da fotografia, costurados com reflexões sobre família, afeto e sexualidade.
Um dos elementos mais impactantes do livro é o fato de não incluir nenhuma ilustração, apesar de ser um trabalho sobre fotografias. É uma maneira de enfatizar a ideia das imagens dolorosas que nunca existiram.
É, nesse sentido, um texto sobre fracassos e composições perdidas. Mas é também sobre uma abordagem emotiva, e não técnica, dessa arte. "A fotografia é também uma prática apaixonada", Guibert escreve já no início.
Os anos 1980 foram difíceis para Guibert, um homem homossexual em um mundo atemorizado pela Aids. Em 1988, ele foi diagnosticado com a doença, que já tinha levado um de seus amores, o filósofo Michel Foucault.
Foi nesse período que escreveu o romance autobiográfico "Ao Amigo que Não me Salvou". São textos curtos, sombrios, sobre receber a notícia da infecção por um vírus antes de existirem tratamentos efetivos.
O tópico da Aids marcou o restante da carreira de Guibert. O artista passou a ir a programas de televisão falar de modo aberto e sincero sobre a doença. O público francês assistiu à degradação de sua saúde na tela.
Seu livro também dá conta dos arroubos de esperança que tinha de se curar. É, em suas palavras, um texto que habita essa "margem de incerteza, comum a todos os doentes do mundo". Ele morreu em 1991.
A morte de Guibert pauta a terceira obra que chegou ao Brasil, "Hervelino". Esta não é de sua autoria, mas de seu amigo Mathieu Lindon, jornalista e escritor. É uma espécie de longo obituário, da pessoa e da amizade.
Não parece haver uma razão clara para a redescoberta de Guibert no Brasil. Não há, por exemplo, uma data-chave de aniversário que justifique o súbito interesse. Pode ser uma dessas coincidências do mercado editorial.
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No caso de "A Imagem Fantasma", a ideia da publicação partiu dos tradutores Lucas Eskinazi e Nina Guedes. Tinham conhecido o escritor na faculdade e sugeriram o texto para a editora.
Eskinazi trabalha com cinema, fotografia e literatura. Guedes é uma artista plástica. Os dois contam que o "espírito de juventude" de Guibert os atraiu.
O texto de Guibert tem "a insolência de um jovem artista", nas palavras de Guedes. Há menções à sexualidade, incluindo tabus. Sobre a foto da mãe, por exemplo, Guibert fala na sensação de cometer incesto.
São livros que faziam falta no Brasil, diz Eskinazi. Estudam-se teóricos daquelas décadas, como Susan Sontag ou Roland Barthes. Mas Guibert fala "da vida em torno da fotografia, da foto de que você tem vergonha", afirma.