Perseguidas pelo governo, pessoas confidenciam segredos sobre a sua sexualidade. Divididas pela Chechênia, elas vivem em um país reconhecido pela morte de LGBTs e escondem traços de sua natureza para sobreviver. Na tela, tecnologias generativas substituem o rosto dos entrevistados e os salvam de punições máximas.
Lançado em 2020, "Bem-Vindo à Chechênia" surge na mente do crítico Bill Nichols, 82 anos, que discute o uso da inteligência artificial no cinema. O teórico americano descreve o conjunto das faces simuladas e vozes reais de cada personagem como espécie de acordo entre o público e o diretor David France. Partimos do princípio de que a linguagem do filme preserva a realidade.
Convidado internacional desta edição do É Tudo Verdade, Nichols veio ao Brasil para participar de uma palestra na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, e como jurado da competição internacional de longas e médias-metragens.
"Alguém poderia associar imagens monstruosas a essas pessoas. Isso seria uma distorção e os responsáveis jamais revelariam seus motivos. As imagens criadas por máquinas e algoritmos são naturalmente não verdadeiras, produzidas para parecerem reais", afirma ele à Folha.
Reconhecido amplamente pelo estudo do documentário, o teórico já antecipava debates parecidos em seus livros, décadas antes da popularização de ferramentas como o ChatGPT e o Midjourney. Ele é tido como um dos primeiros autores a modernizar as investigações dessa área cinematográfica.
Publicado em 2001, "Introdução ao Documentário" se tornou seu título mais famoso. O livro diz ser frequente atribuirmos às produções documentais o objetivo de nos convencer sobre determinada visão da realidade. Quando isso não acontece, tendemos ao descontentamento ou à reflexão crítica.
"O objetivo da decepção é não revelar a verdade. O que inventamos a partir da IA não precisa ser necessariamente bom ou ruim. Podemos neutralizar seu poder decepcionante e apreciar sua inventividade", diz o crítico. Seja por possíveis narradores ou semelhanças no modo de se estruturar o começo, meio e fim de projetos específicos, a obra ainda reconhece um mundo comum à ficção e aos documentários.
"Não vejo dano em ficcionalizar, mesmo no universo documental. Um documentário busca representar algo. Ele intermedeia verdades atribuídas por autores e espectadores. Essa verdade não está lá fora. Ela dialoga com nossas memórias, nosso interior e está acima de qualquer dado absoluto."
Em sua vinda à capital paulista, Nichols exemplifica o elo entre a plateia e os realizadores pelos projetos a que assistiu nesta seleção do festival. Entre eles, descreve os longos e estáticos enquadramentos de "A Invasão", que filma agitações sociais pelas ruas da Ucrânia. Com todos os elementos em foco na câmera, os planos abertos convidam quem os vê a escolher o que priorizar.
Em outro filme, conflitos ambientais de uma zona de preservação no Quênia dividem espaço com os anseios de um homem que deseja se tornar jornalista. "Em Busca de Amina" aproxima o universo pessoal de um jovem movido pela morte do pai de um contexto maior guiado por transformações climáticas.
"Uma das minhas colegas de júri [a cineasta brasileira Eliza Capai] se encontrou ao fazer filmes sobre a maternidade, os direitos reprodutivos das mulheres e suas lutas. Essa é a verdade que ela encontrou, movida por uma paixão interior. Encontrar essa voz é o primeiro passo para lidar com filmes e imagens", diz o escritor.
Capai venceu a competição nacional do É Tudo Verdade em 2023, quando lançou o seu "Incompatível com a Vida". O filme parte de gravações da sua gravidez, em que descobriu uma má formação em seu feto, e propõe um mosaico com outras mulheres e situações semelhantes.
Durante o evento na Cinemateca, Nichols resgatou ideais de outras de suas publicações, como "Speaking Truths with Film: Evidence, Ethics, Politics in Documentary". No livro, ele pensa o documentário enquanto combinação de questões éticas, culturais e políticas, sempre em transformação, e a concretude de imagens visuais.
Frente à rapidez cada vez maior na reprodução de fotos e vídeos, ele pensa num processo que substitui custos de um cinema analógico e democratiza o registro de perspectivas particulares, apesar da dificuldade de se lidar com o enorme contingente de conteúdo.
"O digital permite que muitos produzam seus vídeos. Plataformas como o YouTube e o TikTok podem converter nossas vidas em uma espécie de filme. É um novo modo de vida que não sabemos onde vai parar. Parece que hoje precisamos reagir a tudo instantaneamente", diz Nichols.
Ele também acredita que a pandemia deu tempo à ressignificação de arquivos e materiais pessoais e cita "Adolescência" para dimensionar efeitos do trânsito entre a realidade e o mundo virtual.
"Na série, um jovem comete um assassinato por conta de uma cultura digital em que passa a acreditar. Isso revela o quão integradas à mídia estão nossas interações atuais. É como se a internet fosse o 'Velho Oeste' dos filmes antigos, onde não existem nenhum tipo de regra e tudo pode acontecer."