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Por quase duas décadas, o iPhone vem sendo o grande símbolo da inovação e potência do capitalismo baseado em tecnologia dos EUA. Um dispositivo que mudou o comportamento de bilhões de pessoas ao redor do mundo e abriu possibilidades para que novos negócios aparecessem - de aplicativos de carona à entrega de comidas.
Agora, o iPhone virou a expressão de uma disputa contraditória.
Enquanto alguns analistas usam o carro-chefe da Apple para mostrar como as tarifas de Trump irão impactar os consumidores americanos com preços mais elevados, o governo usa o mesmo produto para emplacar a sua narrativa de que a reindustrialização do país dará certo.
Na última quarta-feira, Trump postou em seu perfil na rede social que Truth Social: "Este é um ótimo momento para levar sua empresa para os Estados Unidos, como a Apple e tantas outras estão fazendo — em números recordes".
A porta-voz da Casa Branca, Karoline Leavitt, reforçou que o investimento de 500 bilhões de dólares anunciado pela Apple recentemente, associado com as tarifas, deve encorajar a empresa a fortalecer sua manufatura dentro das fronteiras dos EUA.
Mas será que isso vai realmente acontecer?
Quando a Apple anunciou esse investimento, nós fizemos uma análise dos planos da empresa em um episódio de "Deu Tilt", podcast do UOL. Contamos que esse valor, embora seja uma cifra incrível, está direcionado para muitas frentes, não especificamente para a produção de iPhones nos EUA.
O plano visa investir em novas fábricas de servidores, expansão de data centers, acelerar a Pesquisa e Desenvolvimento em IA e treinar mão de obra. O que chega mais perto dos iPhones é a promessa de investir na produção de chips na fábrica da TSCM no Arizona.
É provável que a Apple tenha deixado de priorizar a volta da manufatura para os EUA por saber que essa é uma missão muito difícil. A empresa já reconheceu essa dificuldade publicamente muitas vezes. O portal Axios lembrou nesta semana de um comentário feito pelo Steve Jobs, durante conversas com o Obama, de que os EUA não tinham a quantidade de profissionais qualificados que a empresa precisaria.
Ele teria contextualizado a situação a partir de números: na época, a Apple tinha 700 mil trabalhadores de fábrica empregados na China, o que demandava mais de 30 mil engenheiros no local para dar suporte. Para Jobs, seria impossível encontrar tantos engenheiros assim nos em solo americano.
O atual CEO da Apple, Tim Cook, foi ainda mais didático ao explicar por que a empresa tem sua manufatura na China. Ele disse que o país asiático deixou há muito tempo de ser apenas um país de baixo custo, mas um local com a mão-de-obra super especializada que a Apple precisa para produzir seus produtos - o que não existe nos EUA.
Este é o desafio e, ao mesmo tempo, o sonho da administração Trump: trazer de volta o poder de produção. "Será preciso um exército de milhões de seres humanos para apertar os pequenos parafusos de iPhones. É esse tipo de coisa que teria que acontecer", essa é frase do Secretária de Comércio, Howard Lutnick, em uma entrevista para a CBS.
Agora tem que ver se os americanos estão dispostos a voltar a apertar parafusos enquanto o governo trava uma guerra contra a imigração.
Mas a mão-de-obra escassa não é o único problema. O iPhone é um produto complexo, feito por muitos componentes produzidos por outras indústrias. Ainda que a Apple conseguisse atrair a manufatura do iPhone para fábricas americanas, muitas peças e componentes continuariam sendo importadas da Ásia.
Uma das apostas do governo americano é que a futura automação de fábricas por meio de robôs pode ser algo que facilite essa mudança no longo prazo. Mas, hoje em dia, por mais que uma fábrica esteja automatizada, ainda é necessária uma quantidade gigantesca de profissionais para supervisionar o processo e para fazer o trabalho mais fino.
Na prática, hoje há quase um consenso entre analistas, pesquisadores e economistas de que este é um jogo bruto para os EUA. As tarifas de importação encarecem o iPhone para os americanos no curto-prazo, enquanto a possível migração de uma parte da produção para os EUA encarece o produto no médio e longo prazo.
Dan Ives, head de tecnologia da empresa de serviços financeiros Wedbush Securities, afirmou à CNN que iPhones feitos nos EUA poderiam custar até 3 vezes mais, chegando ao preço de 3.500 dólares.
O maior desafio para os EUA é que a China deixou há muito tempo de ser apenas um lugar com mão-de-obra barata. O país asiático domina habilidades e um poder de produção que nenhum outro consegue chegar perto.
O que começou como uma tendência de offshoring - transferência de produção para país de baixo custo - criou um poder de produção e inovação que não foram imaginadas e antecipadas pelas nações dominantes.
Agora que despertaram, estão correndo atrás para contra-atacar. O resultado? Um cenário global tão desorganizado e imprevisível que algo antes impensável começa a parecer até possível: americanos vindo ao Brasil para comprar iPhones mais baratos.
Opinião
Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.