Era uma tarde de inverno da Curitiba de 2014. A data em que Dalton Trevisan completaria 90 anos se aproximava, e reuniões de pauta no extinto caderno de cultura do jornal Gazeta do Povo amealhavam sugestões para dar conta de falar sobre aquele que nunca falava.
A minha ideia foi fazer um perfil da icônica casa em que morava havia mais de 50 anos, no bairro Alto Glória. Os muros já desbeiçados, as árvores com as copas invertidas, a cor plúmbea e as cortininhas bordadas nas janelas nunca abertas contrastavam com os fuxicos de que, na verdade, o interior da casa do vampiro era um verdadeiro palacete.
Um cachorro pequeno corria sobre a grama bem aparada, e volta e meia sabiás de outros tempos pousavam entre cacos de vidro que despontavam no alto dos anteparos e, supostamente, garantiriam a segurança daquele senhor tão genial quanto recluso. Guardaria ele lá dentro, quiçá numa moldura dourada, o diploma do Prêmio Camões de 2012?
Meu parceiro era o ilustrador Osvalter Urbinati, cuja missão era retratar em traços a aura daquele casarão sorumbático que contrastava com o movimento da esquina movimentada em que se erguia. Tudo ia bem até que poderia ter ficado melhor —Dalton Trevisan surge com passos de elfo e sacolinha de mercado na mão esquerda.
Dois mamões, ao que se via. Talvez uns pães para o café da tarde. Jaqueta cinza, calça cinza, boné branco e tênis de cooper. Osvalter apontou com o indicador sem erguer o olhar, pois a cena era excêntrica demais, e aí me virei em direção ao autor de "Em Busca de Curitiba Perdida". Não tive reação, a não ser esperar ele passar —como uma visagem sólida e pungente— e começar a fotografar com meu celular matusalênico.
Trevisan entrou em sua casa, e averiguou algumas vezes se os abelhudos ainda estavam por lá —estávamos. Cheguei à redação esfuziante, avisando que a pauta se tornara melhor do que a encomenda.
Tínhamos fotos inéditas de Dalton Trevisan, e uma boa história sobre um encontro improvável e silencioso. Quinze minutos depois, o chefe de redação avisa que haviam "ligado para o jornal" e que nem a matéria, nem as fotos, sairiam. Neste momento, quase entendi as agruras de Nelsinho.
Dalton Trevisan, que morreu nesta segunda-feira (9), aos 99 anos —e assim indiretamente fez chacota com as festividades que viriam em 2025, ano do seu centenário—, era um sujeito de contrastes. Sua opção pelo anonimato e pela discrição friccionava as relações de poder —ou seria algo entre o privilégio e a admiração?— que mantinha com jornalistas, confidentes e políticos. Algo bem provinciano. Bem curitibano.
Até na hora de sua morte houve "não-me-toques". Segundo informações do serviço funerário de Curitiba, publicadas ainda na noite de segunda, não haveria velório e o corpo seria cremado nesta terça-feira (10). Cerca de dez minutos depois, a publicação foi excluída.
Familiares ouvidos pela reportagem local insistiam em negar o falecimento do escritor, num misto de incredulidade com resguardo, como se falar sobre Trevisan morto fosse tão difícil quanto saber notícias dele vivo. Ironicamente, coube ao perfil oficial de Dalton Trevisan no Instagram confirmar seu epílogo: "Todo vampiro é imortal. Ou, ao menos, seu legado é. Dalton Trevisan faleceu hoje, 9 de dezembro de 2024, aos 99 anos".
Com mais de 700 contos e novelas escritos e pelo menos 55 livros publicados, Trevisan venceu, além do Camões, quatro vezes o Prêmio Jabuti —a primeira delas em 1960 com seu livro de estreia, "Novelas Nada Exemplares".
Trevisan se apaixonou platonicamente por uma Curitiba infante, mesquinha, lasciva e nostálgica em suas imperfeições e hipocrisias. Em seus textos, que foram encolhendo ao longo do tempo numa busca incessante pela concisão extrema, retratava com conhecimento de causa uma cidade-dilema.
Ninguém irá escrever como Dalton Trevisan. Ninguém mais ousará espremer um texto até o nada aparecer. Ninguém mais se sentirá tão provinciano em Curitiba como Dalton Trevisan.