O francês Stephane Maquaire [a pronúncia é Estéfan Maquér], 50, não gosta de sentir frio. Ficaram para trás os anos em que ele morou na Suíça e tinha como hobby esquiar nas montanhas de neve. Hoje um dos seus esportes favoritos é beach tennis, praticado todo sábado com a esposa.
"Brasileiros gostam de chegar a uma sala de reunião e se sentirem em uma geladeira, mas eu não", disse Maquaire, presidente do Carrefour Brasil. "Se eu não falo nada, deixam o ar-condicionado em 18 graus", afirmou à Folha na sede da empresa, em Tamboré, na Grande São Paulo. Ao fim da entrevista, em que a refrigeração esteve desligada a maior parte do tempo, a camisa azul clara de linho do executivo, de manga longa, ficou encharcada de suor. "É um pouco caloroso, mas, até 30º C, tudo bem. Gosto de uma temperatura mais equilibrada ao longo do dia."
Equilibrar a aposta entre as diferentes bandeiras do grupo no Brasil –Carrefour, Atacadão e Sam's Club– para se manter na liderança do varejo brasileiro, posição consolidada desde a compra do grupo Big (antigo Walmart), em 2021, não parece ser um problema para Maquaire. Desde setembro de 2021, quando assumiu a filial brasileira, a maior do grupo no mundo, o executivo apresenta bons resultados.
As vendas brutas aumentaram 48% nos últimos três anos, para R$ 120,6 bilhões. O faturamento do banco Carrefour avançou 43%, para R$ 68,8 bilhões, período em que a carteira de crédito saltou 85%, para R$ 28,4 bilhões. Mas entregar lucro aos acionistas controladores em meio à alta galopante da Selic também tem feito o francês suar a camisa: o resultado líquido de 2024 foi praticamente o mesmo de 2021, R$ 2,4 bilhões.
Quando Maquaire assumiu, a taxa básica de juros no país era 5,25%. Hoje está em 14,25%. Juros mais altos fazem avançar a dívida líquida da empresa, que precisa gastar mais para antecipar os recebíveis (vendas a prazo) e ter capital de giro.
"Com a alta da Selic, gastamos mais de R$ 2 bilhões ao ano pagando juros", diz. "É muito dinheiro. Uma loja Atacadão custa, mais ou menos, R$ 60 milhões, R$ 70 milhões. São tantas lojas que não vamos abrir [cerca de 30 ao ano], por termos que pagar juros mais altos."
Em 2024, o grupo reorganizou o portfólio e fechou 214 lojas (a maioria supermercados). Abriu 33 pontos, incluindo a conversão de hipermercados e supermercados em Atacadão.
O francês garante que a companhia vai continuar investindo no país e que, no curto prazo, o Carrefour Brasil deve ter mais cara de Atacadão –a operação de atacarejo que responde hoje, sozinha, por 70% das vendas da filial. "O Atacadão pode representar 80% das vendas em 2030."
Você é engenheiro, começou trabalhando como auditor, mas já foi administrador de uma escola de moda, o Institut Français de la Mode, em Paris. Como foi isso?
São as mudanças da vida. Quando aprendi na escola de engenharia um pouco de matemática financeira, não achava que iria trabalhar no varejo alimentar. Mas acabei me aproximando dos consumidores, desse coração que bate forte no cotidiano do varejo, e gostei muito. Trabalhei em uma empresa que administra shopping centers, na rede Monoprix [do rival francês Casino] e no varejo de moda [Vivarte e Orchestra]. Foi quando me aproximei da escola de moda. Foi bem legal. Neste sentido, foi uma pena ter mudado para a América Latina, porque não pude continuar conselheiro. Mas temos que fazer escolhas.
Você já dirigiu operações de varejo na França, na Argentina –onde foi CEO do Carrefour– e há quatro anos está no Brasil. O que aproxima e o que distingue consumidores nesses três mercados?
O consumo na França é bem maduro, a concorrência está bem estabelecida. Na Argentina, assim como no Brasil, é mais pulverizado. Quando olhamos os cinco maiores players da França, eles têm 80% do varejo alimentar. Aqui no Brasil, o cinco maiores têm 40% do mercado. Por outro lado, o consumidor brasileiro aproveita muito mais da dívida para consumir.
Como assim?
O consumidor se endivida mais para comprar, ele aproveita a possibilidade de ter crédito. Já os franceses são muito cautelosos, muito cuidadosos em se endividar, especialmente para compras cotidianas. Você não usa dívida para comprar alimentos na França, o que é muito mais comum no Brasil e na Argentina. Neste sentido, é um consumo mais americano. A dívida faz parte da vida das pessoas aqui no Brasil.
Mas para o Carrefour, que tem um banco [em parceria com o Itaú], esse aspecto é interessante.
Exatamente, porque nós temos um ecossistema completo. Com um banco, temos produtos para apoiar o consumidor a comprar, como cartões de crédito para cada um dos nossos negócios. Temos uma relação muito mais rica com os nossos clientes aqui no Brasil, graças a esse jeito de consumir usando a dívida.
E quanto ao perfil de consumo, quais as diferenças entre brasileiros, argentinos e franceses?
Eu diria que todos os produtos frescos são bem desenvolvidos na França, na Europa como um todo, e um pouco menos na América Latina, sobretudo na Argentina. Porém, tudo o que é carne, carne vermelha, frango, ovos são mais consumidos aqui do que na França. Os franceses tomam mais vinho, e aqui mais cerveja. Em relação aos formatos de varejo, há diferenças entre os países. Aqui é a casa do atacarejo, o 'cash & carry', um exemplo único no mundo, bem forte no Brasil, que também vem crescendo na Argentina, com a nossa bandeira Maxi, e quase não existe na França.
Em 2024, o Atacadão estreou na França, mas a chegada do formato gerou protestos [foi chamado de "projeto miserabilista"]. Como estão as vendas hoje? Há planos de novas lojas?
As vendas estão crescendo, os franceses estão descobrindo, definitivamente gostaram do modelo, mas também temos que construir relações com os pequenos comerciantes na França. A maturação de uma loja 'cash & carry' precisa de três anos, ainda é um pouco cedo para pensar em novas lojas.
O Atacadão responde por cerca de 70% das vendas do Carrefour no Brasil. O grupo não se preocupa em depender tanto de um modelo de negócios "estrangeiro"?
O Carrefour global costuma entender bem os modelos de consumo em cada país. No Brasil, o 'cash & carry' representa mais ou menos 50% do varejo alimentar como um todo. O grupo entendeu isso, comprou o Atacadão em 2007, e desde então investimos muito para fazer crescer esse modelo. Há 18 anos, eram 37 lojas. Hoje são 379, mais de dez vezes. Acompanhamos a jornada de crescimento do atacarejo no país.
O Carrefour esteve no centro de algumas grandes polêmicas nos últimos anos –primeiro com o caso Beto Freitas, o homem negro morto por seguranças da rede em 2020 e, no final de 2024, com o boicote francês à carne brasileira, apoiado pelo CEO global, Alexandre Bompard. Você considera esses episódios superados? Acredita que o consumidor já esqueceu?
No caso da crise da carne, conseguimos resolver rapidamente. Pedimos desculpas, houve uma retratação feita pela França, trabalhamos muito e o episódio foi superado. O abastecimento das lojas não chegou a ser um problema, não faltou carne para os nossos clientes. Obviamente, não queríamos essa crise, mas houve um lado positivo, que foi a nossa aproximação com os fornecedores de carne, sobretudo a bovina.
No caso da tragédia de Porto Alegre, é outra coisa, porque não vamos esquecer. Já investimos R$ 115 milhões em treinamentos, em ações antirracistas, e seguimos investindo para construir e fortalecer a nossa cultura antirracista. O tema diversidade e inclusão é muito forte no grupo Carrefour hoje do que cinco anos atrás. Recebemos 2 milhões de clientes por dia em nossas lojas, temos a responsabilidade de participar das mudanças que o país precisa, na construção de um mundo mais inclusivo e respeitoso.
Quando você lidera operações importantes na América Latina, você tem um papel muito mais relevante do que na Europa. Obviamente que a França tem os desafios dela, mas aqui você participa da construção do país do futuro de forma muito mais forte, você está na vida cotidiana das pessoas, pode fazer parte das mudanças muito mais do que na Europa, onde tudo já está estabelecido.
A gestão do Carrefour já foi apontada como "francesa demais", com uma minoria de brasileiros no alto escalão. Como você responderia a essa crítica?
Somos 11 pessoas no comitê executivo do Carrefour Brasil, com sete brasileiros, dois franceses, um inglês e um argentino. A alta liderança é muito mais brasileira hoje do que quatro anos atrás, quando cheguei, e tem que ser assim. Mas no conselho de administração é outra coisa, porque 70% do nosso capital está nas mãos dos franceses. Dos 13 conselheiros, 7 são franceses, 5 são brasileiros e uma é portuguesa.
Em fevereiro, o Carrefour anunciou a intenção de fechar o capital no Brasil, algo que deve ser decidido neste segundo trimestre. Quais as razões dessa medida?
Eu acho que vai agilizar as operações, porque ter duas empresas de capital aberto, uma em cima da outra, em dois países diferentes, não facilita muito. Alinhar as comunicações, a estratégia entre as duas realidades, é sempre um desafio. Então, o fechamento de capital vai facilitar muito. Por outro lado, depois que comprarmos o grupo Big, ficamos mais endividados. Se fecharmos o capital, desaparece essa problemática específica da alavancagem, vamos seguir com um nível de dívida menor que o da nossa concorrência, e isso deixa de ser um tema.
Qual o peso da Selic em dois dígitos para os negócios?
Atrapalha em duas dimensões. Primeiro, o brasileiro tem mais restrição para consumir. E nós, como empresa de capital aberto, gastamos muito dinheiro em juros, R$ 2 bilhões ao ano, o que atrapalha um pouco a nossa capacidade de investir, poderíamos abrir lojas. Uma loja do Atacadão custa mais ou menos R$ 60 milhões, R$ 70 milhões, e gera 250 postos de trabalho. São tantas lojas que não vamos abrir por termos que pagar juros mais altos.
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Quais os pontos fortes do grupo no Brasil? Por que um cliente deve ir ao Carrefour e não ao Pão de Açúcar, ou ir ao Atacadão, em vez de ao Assaí?
Trabalhamos muito o nosso posicionamento de preço para ficar sempre um pouco abaixo da concorrência, tanto no Atacadão como no Carrefour. Temos marca própria, de entrada, como uma opção de menor preço. Adotamos nas duas bandeiras a política de "segundo preço": se você levar três itens do mesmo produto, paga um pouco menos no valor unitário. No Atacadão, é possível comprar em três vezes sem juros.
Quais as expectativas de negócios para 2025?
A inflação alimentar tem atrapalhado um pouco os volumes de vendas nos primeiros meses mas, ainda assim, janeiro e fevereiro foram melhores do que dezembro de 2024. Mas vamos seguir investindo no Brasil, este anos completamos 50 anos no país. Vamos abrir lojas e ampliar nossos canais digitais, o e-commerce já representa 10% dos nossos negócios.
Como deve ser o Carrefour Brasil 2030?
Nós trabalhamos para continuar na liderança. Em 2030, o grupo Carrefour Brasil será ainda mais Atacadão, estamos trabalhando para que esse formato tenha uma proporção ainda maior nas vendas, chegar a 75%, 80%. Também queremos canais digitais ainda mais fortes, há muito espaço para crescer nesse sentido. Será um grupo Carrefour mais Atacadão, mais digital, e também mais diverso e inclusivo.
RAIO X - STEPHANE MAQUAIRE
Idade: 50
Origem: Gouvieux (França)
Onde trabalhou: Arthur Andersen, Unibail-Rodamco, Monoprix, Vivarte, Manor, Institut Français de la Mode, Orchestra
Formação: engenharia
HIPERMERCADO DO GRUPO NO BRASIL CONCORRIA COM O JUMBO
Em francês, o nome Carrefour significa "cruzamento". Foi no encontro de duas ruas de Annecy, no sudeste francês, que a primeira unidade do grupo surgiu, em 1959. Além da França, o Carrefour opera hoje diretamente em cinco países da Europa (Espanha, Itália, Bélgica, Romênia e Polônia) e dois da América Latina (Brasil e Argentina). Em outros 32 países, opera com franquias.
O Brasil é a maior filial do grupo. A empresa chegou ao país em 1975, com a inauguração de um hipermercado na Chácara Klabin, zona sul da capital paulista, para competir com o Jumbo, o então hipermercado do Grupo Pão de Açúcar.
Em 2007, comprou a rede de atacarejos Atacadão. Em 2014, começou a apostar em lojas menores, de conveniência, que batizou de Express. No mesmo ano, a Península, do empresário Abilio Diniz, filho do fundador do Pão de Açúcar, adquiriu 10% do grupo no país.
Em 2017, o Carrefour abriu o capital no Brasil. Em 2020, comprou a rede Makro de atacarejos. No início de 2021, veio a grande tacada: a compra do grupo Big, ex-Walmart, dono das bandeiras Maxxi, Big, Big Bompreço e Sam's Club, por R$ 7,5 bilhões.
Em novembro de 2020, às vésperas do Dia da Consciência Negra, Beto Freitas, um cliente negro de 40 anos, foi espancado até a morte por seguranças de uma loja do Carrefour em Porto Alegre, após desentendimento com uma funcionária do caixa. O episódio foi comparado ao caso do americano George Floyd, também negro, estrangulado nos Estados Unidos por um policial branco.
O Carrefour fechou um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com o Ministério Público, que envolveu o aporte de R$ 115 milhões em ações antirracistas. Depois disso, investiu mais R$ 50 milhões nas iniciativas. Até 2030, a empresa pretende ter negros em 50% das posições de liderança (hoje são 35%), ocupando cargos de gerência ou coordenação. Entre os executivos (diretores, presidentes e conselheiros), a meta é atingir 20% (hoje, são 13%). Dos 130 mil funcionários, 60% são negros e 50,5% são mulheres.
RAIO X - GRUPO CARREFOUR BRASIL
Fundação: 1975, em São Paulo
Funcionários: 130 mil
Faturamento 2024: R$ 120,6 bilhões
Lojas: 1.007
Presença: 26 estados, mais Distrito Federal
Principais concorrentes: Assaí, Grupo Mateus, Pão de Açúcar
SÉRIE ENTREVISTA LIDERANÇAS DE GIGANTES DO VAREJO BRASILEIRO
A Folha deu início em 24 de março à série "Lideranças do Varejo", com entrevistas em vídeo e texto com os presidentes de algumas das maiores redes e marketplaces do país.
As reportagens trazem um perfil das empresas, dos seus líderes e a história de algumas marcas já incorporadas ao dia a dia da população.
Entre os temas que ocupam o cotidiano dos executivos estão a queda de braço com a indústria por preços, a adaptação às legislações trabalhista, tributária e que regulamentam a logística em diferentes estados e cidades do Brasil, a adoção de evoluções tecnológicas, a procura por melhor margem de lucro e a necessidade de sentir o pulso do consumidor, para acompanhar as mudanças de comportamento que levam a novos hábitos de compras.