O escritor norueguês Jostein Gaarder conta que, alguns anos atrás, percebeu algo sobre o seu best-seller "O Mundo de Sofia" que o deixou em pânico. Ele não tinha abordado no romance, uma espécie de iniciação à filosofia ocidental, aquela que talvez fosse a principal questão da atualidade —como seremos capazes de preservar as condições de vida na Terra?
"Fiquei em choque, comecei a suar frio", diz o autor sobre o momento em que folheou um exemplar da obra que vendeu mais de 50 milhões de cópias desde a sua publicação, em 1991, e notou que não tinha nem sequer citado o assunto.
Essa lacuna o levou a escrever "Nós que Estamos Aqui Agora", obra que se estrutura a partir de uma carta do autor para os seus quatro netos. Com idades que variavam de poucas semanas de vida a quase 18 anos na época da produção do livro, durante a pandemia, todos nasceram neste século e possivelmente testemunharão o início do próximo.
O argumento central de Gaarder é a ideia de que solucionar a crise ambiental é também uma responsabilidade ética, seja no que se refere ao compromisso desta geração com as próximas quanto com o planeta como um todo.
Ao desenvolver essa tese, o norueguês também explora outros temas relativos ao futuro da humanidade, como a existência de vida em outros planetas e os principais avanços científicos dos últimos tempos.
Trata ainda de questões mais, digamos, ordinárias, como o que é a amizade ou o amor —que são, no final, as mais importantes, segundo o escritor. "Não podemos esperar ter uma vida próspera se não nos perguntarmos o que é uma vida próspera", diz ele.
Um dos momentos mais marcantes de "Nós que Estamos Aqui Agora" é quando o sr. narra que voltou a "O Mundo de Sofia" e percebeu que o livro não abordava o tema da preservação da vida na Terra, que hoje considera fundamental. O que o levou a essa conclusão?
Perguntas filosóficas mudam ao longo do tempo, por muitas razões. Por exemplo: no século 17, começamos a fazer máquinas, então passamos a nos perguntar qual era a diferença entre uma máquina e um ser vivo.
Hoje, acho que temos de fato poder para mudar as condições de vida na Terra. Nesse sentido, somos, talvez pela primeira vez na história, verdadeiramente responsáveis pelas gerações futuras. Por isso considero nossa capacidade de preservar a vida no planeta a principal questão filosófica contemporânea.
Essa questão se divide em dois aspectos. Um deles é moral. Acho que é nosso dever deixar o planeta em uma condição até melhor do que o encontramos quando nascemos.
Também há uma dimensão intelectual nesse debate. Embora todos nos preocupemos com o futuro da Terra, como fazer as mudanças necessárias para cuidar dela? É uma pergunta difícil de responder. Vemos o estado do mundo hoje. Como podemos então nos unir para lidar com esses problemas?
O sr. discute principalmente a crise climática no livro. Mas quando ele foi escrito, ainda não havia a Guerra da Ucrânia, e a inteligência artificial (IA) não era tão avançada, entre outros. Na sua perspectiva, a questão ambiental ainda é a maior ameaça que enfrentamos?
Se escrevesse o livro hoje, definitivamente colocaria mais ênfase em temas como a importância da democracia, a IA. Mas essas coisas estão todas interligadas.
E no caso da IA especificamente?
Devo afirmar que não sou um especialista no campo, mas tento acompanhar o seu desenvolvimento. E, até agora, não existe uma inteligência artificial de fato. Ou melhor: há uma inteligência, mas não uma consciência, que é o que há de mais enigmático no universo. Computadores não sentem pena, não se apaixonam. Mesmo se, no futuro, uma máquina disser que é consciente, eu hesitaria em acreditar nela.
No livro, o sr. especula que a própria consciência pode ter irrompido diversas vezes no espaço-tempo, e os humanos seriam só um exemplo disso. Isso não poderia acontecer também com os robôs?
Sim, poderia. Como também afirmo no livro, não podemos excluir a possibilidade de cisnes negros. Antigamente, dizia-se que todos os cisnes eram brancos, e que cisnes negros eram uma fantasia. Mas no século 18, encontraram cisnes negros na Austrália. Coisas incríveis já foram descobertas, e temos que aceitá-las. Quando imaginaríamos que o Sol não está girando em torno do planeta, ou que a nossa galáxia, a Via Láctea, é uma entre milhões de outras. Sabemos muito pouco sobre nosso universo, incluindo que tipos de consciência podemos esperar encontrar nele.
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O sr. deu uma entrevista a este jornal em 2015 em que dizia que as principais questões filosóficas daquela época já não eram mais discutidas por filósofos, mas por cientistas. E, de fato, a maior parte de seu novo livro trata de ciência. Sua opinião sobre isso mudou nesses últimos dez anos?
Muitas das maiores questões filosóficas da história ainda instigam debates importantes, mas deixaram a filosofia. Elas passaram a ser discutidas por cientistas. Por exemplo, o que é consciência? Quero discutir isso com um biólogo ou com um neurologista. Claro, ainda será um debate filosófico, mas ele será baseado na ciência.
E há perguntas que, na sua opinião, não podem ou deveriam migrar para a área científica?
Acho que há muitas perguntas que devem permanecer sem respostas definitivas. Por exemplo, o que é o amor? Muitas vezes me perguntam se eu acredito na existência do amor romântico. E frequentemente respondo que sim, que acredito nele, embora não ache que seja algo com que simplesmente nos deparamos na esquina; é algo que vamos criando.
O que é amizade? O que é uma sociedade justa? O que é, ou o que deveria ser, uma democracia? Que sistema é melhor para se preservar as condições de vida na Terra, uma ditadura ou a democracia? Como podemos evitar as guerras, e como acabar com elas de uma vez por todas?
Temos que fazer essas perguntas a nós mesmos de novo e de novo, porque não há resposta final a elas. Não podemos esperar ter uma vida próspera se não nos perguntarmos o que é uma vida próspera.
Vários trechos do livro tratam do seu interesse pela filosofia quando criança. E em um deles, em especial, o sr. afirma que talvez tenha decidido se tornar escritor para nunca deixar de se espantar com a existência. Acha que as pessoas se tornaram mais ou menos curiosas desde então?
Cresci nos anos 1950 e 1960. Ficava com frequência decepcionado quando perguntava aos meus pais ou aos meus amigos se eles não achavam um mistério existirmos e eles diziam que não.
Hoje, há muita curiosidade em torno disso. Mas também acho que muito se perde no entretenimento.
Os smartphones são um tesouro. É incrível como temos acesso a todo o conhecimento humano e a todas as pessoas do mundo. Mas somos humanos. E aparentemente estamos mais interessados em nós mesmos do que em todas as possibilidades que esses smartphones nos oferecem.
Respondendo à sua pergunta, acho que talvez tenhamos ficado mais "blasé". É como a história do alcoólatra que disse que antes costumava esvaziar a garrafa, mas depois a garrafa que começou a esvaziá-lo. Podemos dizer o mesmo sobre os smartphones.
Ainda no livro, o sr. afirma que não podemos nos dar ao luxo de ser pessimistas. Pode desenvolver essa ideia?
Acho que pessimismo é outra palavra para preguiça. Você pode só deitar no sofá e ser pessimista. Por outro lado, ser otimista também é fácil demais. Há muitas razões para não sê-lo.
Mas há uma categoria entre o pessimismo e o otimismo, que é a esperança. E ela é uma coisa que se deseja, mas pela qual é preciso lutar. É uma palavra muito importante para mim.
RAIO-X | JOSTEIN GAARDER, 72
Um dos principais nomes da literatura da Noruega, é professor de filosofia e autor de uma série de romances infantojuvenis. "O Mundo de Sofia", seu livro mais famoso, foi traduzido para 65 idiomas.