Opinião - Veny Santos: Filhos e filhas do 6x1

há 1 mês 5

Nem herói, nem vilão. Meu pai era trabalhador. Levantava-se quatro da manhã, ficava três horas dentro da condução e voltava quando o hoje já se preparava para ser ontem. Às vezes eu conseguia ver sua sombra cobrindo as paredes da cozinha. Não sabia se era sonho ou realidade. Sei que era raro. Seis contra um. Seis dias contra nós.

Ele dormia demais, pensava eu. Quando criança, tinha dessas de pular cedo da cama no domingo e ir acordar o pai para que ele desse início àquele dia tão esperado. Queria vê-lo fazer a barba, depois escolher a roupa, pegar a carteira e o molho de chaves e dizer aonde iríamos. Às vezes no varejão, outras no mercadinho da vila. Eu gostava mesmo era quando ele levava no morro. Literalmente um morro, no qual escalávamos para observar o futebol de várzea das alturas.

Passava rápido, óbvio. Tudo o que é bom dura pouco. A maior parte do dia era dentro do bar. Virava a minha diversão também. No começo eu não gostava. Achava chato, sem muito o que fazer. De repente, um salgadinho aqui, uma ficha de fliperama ali, tudo numa boa. Além de ser o dia que eu tinha com ele, tornou-se a memória mais fiel da presença paterna na infância. O José era trabalhador, nem marido, nem pai. Trabalhador que dormia cedo e seu humor escurecia antes mesmo do Fantástico.

Eu fechava os olhos e, quando os abria novamente, era domingo outro. Assim que minha mente trabalhava a saudade. Apagava seis dias das ideias da mesma forma que os seis dias apagavam um pai de mim. Durante a semana, ele era vulto, difuso entre a presença do sono e a ausência de sonho. "Dorme que passa": a saudade, a falta e os dias que faltam.

Desde pivete já peguei cisma de algumas frases. "Só no dia 15" e "Tenho que fazer horas extras". A primeira era garantia de frustração; a segunda —que de "extra" só tinha o nome, afinal, sempre era necessário fazê-las— anunciava menos tempo com aquele cara que eu achava tão legal, diferente, forte e bravo. A cara fechada, com aqueles talhos todos de preocupação, dizia muito. "Deixe-me quieto no meu canto". O silêncio, ainda assim, bastava porque ele estava ali. Trabalhador cansado.

Não entendia como ele conseguia ficar uma tarde toda bebendo e vendo futebol —fosse no campinho ou na televisão engordurada do bar. O álcool passou a tomar a goladas o pouco tempo que tinha com meu pai. Quem sonhava acordado agora era ele, anestesiado, com a visão fixada ao impossível horizonte marcando a linha da altura do balcão.

O estresse, a angústia e a ansiedade quando o relógio marcava 17h antecipavam a chegada do meu pai ao chão de fábrica dos dias seguintes. Trinta anos, e destes, quantos? Pergunto, hoje, quantos? Poucos. Ao menos direito à memória eu tive e aqui estou, torcendo —e tecendo palavras— para que tantos outros filhos e filhas de trabalhadores também consigam guardar a presença deste amor fundante, no qual nem mesmo a exaustão encontrou espaço no abraço de pai.

O mundo muda. Em seu movimento, nós também mudamos. Precisamos avançar, rever para nos revermos mais do que um dia. Novos tempos, novos momentos, novas lembranças de uma realidade não mais vivida aos poucos. Aos poucos domingos.

Seis por um dia juntos. Na verdade, seis contra nós.

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