Diz a Bíblia que o espírito santo é o poder de Deus em ação. Mas a família portuguesa Espírito Santo também tem poder divino.
Por cerca de 150 anos, o clã construiu um império global com centenas de empresas, que se estendeu desde a banca europeia a minas de diamantes na África ou a um gigantesco portfólio imobiliário e agrícola na América Latina. Cultivaram relações estreitas com estadistas em diversos países, incluindo Angola, Venezuela, Líbia, Paraguai, Brasil e Portugal. Foi no palacete da família em Cascais que se alojou, em 1940, o rei Eduardo 8º, após abdicar do trono britânico.
A matriarca da família Espírito Santo chegou a ser a mulher mais rica do país. O atual patriarca, Ricardo Espírito Santo Silva Salgado, 80, foi apelidado de "Dono Disto Tudo". Por décadas, foi tratado com reverência papal proporcional ao seu poder tentacular. Como os pontífices, não andava, desfilava. Acenava, não cumprimentava.
Em 2014 o império implodiu. Dívidas ocultadas, ativos sobreavaliados, erros grosseiros de gestão e inúmeros casos de corrupção revelaram uma organização criminosa. O Ministério Público português, por intermédio de vários processos simultâneos, acusa Ricardo Salgado, juntamente com outros arguidos, de 671 crimes, incluindo associação criminosa, que geraram um dano financeiro de mais de 18 bilhões de euros. Esta semana começou o seu Juízo Final, ligado às falcatruas no Banco Espírito Santo, a joia da coroa. Em outros processos, já foi condenado a penas efetivas de prisão.
O patrono também vai ser julgado por suspeitas de ter corrompido, em 2011, um vice-presidente do Banco do Brasil tendo-lhe pagado mais de um milhão de dólares como contrapartida por um empréstimo de 200 milhões de dólares. Os seus advogados negam a prática de qualquer crime.
A família tem ligação forte ao Brasil. Em 1975, em meio a um processo revolucionário iniciado com a queda do fascismo em Portugal, os ativos da família Espírito Santo foram nacionalizados. No livro de honra na sede do banco, uma mão ideologicamente canhota escreveu em março desse ano: "Aqui acabou o domínio dos criminosos monopolistas inimigos do povo e da revolução".
A família foi afastada dos negócios e foi viver no Brasil (1976-1982), onde foi recebida pela elite cultural e financeira. Na edição de 29 de maio de 1976 da Folha de S.Paulo, a coluna social de Tavares de Miranda (com fotos) deu destaque às homenagens que o pianista João Carlos Martins e o industrialista Lelio de Toledo Piza fizeram à família Espírito Santo, "agora no Brasil para grandes investimentos".
No Brasil, até ao colapso do império há uma década, a família deteve a Companhia Brasileira de Agropecuária (Cobrape), a Rioforte Investments Holding Brasil e a ES Property Brasil, entre outras companhias. A Cobrape controlava uma fazenda de 20 mil hectares no município de Formoso do Araguaia, Tocatins, dedicada à produção de arroz e soja e criação de gado bovino.
O grupo detinha também os hotéis Tivoli (resort Praia do Forte na Bahia e Mofarrej São Paulo), vendidos, após a derrocada, a um grupo hoteleiro tailandês. A empresa imobiliária do grupo foi responsável por dezenas de empreendimentos em várias cidades brasileiras. Em São Paulo, construíram o Shopping Villa Lobos, além da Quinta da Baroneza, o maior condomínio de campo e um dos mais modernos clubes de golfe do Brasil. A lista de ativos brasileiros inclui ainda os setores da energia, turismo e telecomunicações.
Ricardo Salgado, agora padecendo de Alzheimer, nunca se sentiu um forasteiro no Brasil. Entre 2003 e 2012 foi administrador não executivo do Bradesco. Em 1998 foi condecorado como Grande Oficial da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul pelo presidente Fernando Henrique. Era no Brasil que a família Espírito Santo passava férias com Marcelo Rebelo de Sousa, atual presidente de Portugal.