Eis algo que devia deixar todo mundo embasbacado: a nossa capacidade de mensurar o passado profundo com precisão.
Costumamos esquecer o quanto esse poder mágico é recente. Antes do século 20, que nos trouxe uma compreensão cada vez mais refinada dos componentes básicos da matéria, não havia nenhuma ferramenta quantitativa capaz de nos dizer a idade absoluta de uma rocha. Esta camada aqui tem 5 milhões ou 10 milhões de anos? A única resposta honesta possível era "não sei", ainda que fosse possível falar em idades relativas, com base na sobreposição das camadas (as mais velhas tendem a ficar mais para o fundo do que as mais recentes).
Um dos truques modernos por trás da compreensão quantitativa do passado profundo se baseia no magnetismo. Nosso planeta conta com um campo magnético que sofre mudanças de orientação ao longo do tempo, e essas transformações podem ficar gravadas nas rochas.
Grãozinhos minerais com dimensão nanométrica (na escala dos bilionésimos de metro, equivalentes a meros centésimos da largura de um fio de cabelo) são capazes de preservar a assinatura desse campo magnético que existia quando a rocha em que estão foi formada, e tal assinatura pode durar bilhões de anos. Assim, a sucessão de idas e vindas do campo magnético funciona como um calendário da história da Terra, em especial quando acoplada a outras evidências.
Um novo trabalho, assinado por pesquisadores brasileiros, deu um passo importante para analisar a confiabilidade desse magnetismo "congelado". No estudo, que tem como primeiro autor Ualisson Donardelli Bellon, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP, a equipe analisou as propriedades de grãos ligeiramente maiores do que os citados no parágrafo anterior, conhecidos como grãos de estado de vórtex.
Bellon explica que, enquanto os grãozinhos menores contam com uma magnetização interna que os faz apontar para a mesma direção, isso tende a mudar conforme o tamanho deles aumenta. Eles começam a oscilar em torno de um eixo, o que caracteriza o tal "estado de vórtex".
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É comum analisar os grãos de estado de vórtex como se eles trouxessem essencialmente a mesma informação sobre o antigo campo magnético da Terra que pode ser obtida a partir dos grãozinhos menores. Bellon e seus colegas, porém, queriam investigar se era mesmo possível trabalhar com base nesse pressuposto.
Para o artigo descrevendo o trabalho, que saiu recentemente na revista especializada Communications Earth & Environment, eles usaram um acelerador de partículas na Suíça para obter imagens extremamente precisas das partículas.
Resultado: embora a maioria delas tenha características magnéticas estáveis (ufa!), há casos de grãozinhos, na fronteira entre as dimensões menores e o estado de vórtex, que podem perder sua magnetização em questão de meras horas.
Ou, caso eles tenham formato irregular, seus estados magnéticos podem ser diferentes dependendo da temperatura, diz o pesquisador, que faz pós-doutorado na Universidade de Edimburgo, na Escócia. Métodos que envolvam mudanças de temperatura desse tipo de rocha, portanto, podem acabar afetando a interpretação do magnetismo do passado. Ninguém disse que desvendar bilhões de anos ia ser simples.