Crescer no interior paulista durante os anos 1980 e 1990 era sinônimo de presenciar chuvas periódicas de cinzas nos meses mais secos do ano. Os fragmentos enegrecidos que desciam do céu, terror e trauma das mães que tinham acabado de lavar o quintal ou a garagem, eram um subproduto da colheita da cana. Em larga medida, a prática de queimar canaviais antes da colheita ficou no passado, mas isso não foi suficiente para impedir que, durante a semana que passou, o céu da mesma região se transformasse numa sopa de fumaça por conta de plantações, pastos e terrenos em chamas.
Não gosto de pensar em como esse cenário está afetando bebês, idosos ou quem tem problemas respiratórios crônicos. Ainda assim, seria muita autoindulgência pensar no problema apenas sob o prisma do interior de São Paulo. Qualquer pessoa minimamente atenta ao noticiário deveria estar ciente de que desastres similares estão afetando muitas outras regiões do país, em especial os estados amazônicos e pantaneiros.
A complacência é o maior obstáculo para a compreensão do que realmente está acontecendo neste momento. É muito fácil deixar a cabeça no automático e achar que não há nada de surpreendente numa onda de queimadas e incêndios na época da seca. Afinal, "sempre acontece", não é?
Em certa medida, sempre aconteceu, de fato –notadamente nas áreas de cerrado, cuja vegetação foi moldada pela presença periódica do fogo ao longo de muitos milênios de evolução. Mas deixar as coisas por isso mesmo é ignorar que a assinatura dos eventos climáticos extremos está cada vez mais inconfundível nas últimas décadas.
Isso é especialmente verdade no caso das ondas de calor em regiões brasileiras nas quais sempre houve uma estação seca relativamente bem marcada, como é característico de amplas áreas do interior do Sudeste e do Centro-Oeste. O que tem ficado cada vez mais claro é 1) uma diminuição ainda maior da média já escassa de chuvas para esse período do ano e 2) temperaturas consideravelmente acima dos 30 graus Celsius mesmo quando ainda deveríamos estar no "inverno".
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A equação não deveria ser difícil de resolver. Ainda menos chuva do que de costume + temperaturas bem mais altas que o esperado = vegetação ficando seca de forma mais rápida, intensa e persistente.
A verdade é que, nas últimas décadas, a maior parte do Brasil tem produzido matéria orgânica inflamável em ritmo acelerado –um fenômeno muito semelhante ao de outras "zonas incendiárias" mundo afora, como partes da Austrália e da Califórnia. Não admira que o fogo esteja alcançando patamares antes impensáveis e "mordendo" as bordas mais desmatadas de locais que antes queimavam muito menos ou não queimavam, como a região amazônica.
Tudo isso significa que simplesmente não dá para pensar no manejo do fogo com a complacência de outrora. Mesmo deixando de lado atos deliberadamente criminosos, como queima de vegetação natural para fins de grilagem, até o uso "inocente" do fogo para limpar pastagens e coisas semelhantes é arriscado demais para que seja tolerado sem controles e potenciais punições muito mais rígidas do que as existentes hoje.
É claro que falar é muito mais fácil do que fazer, a começar pela falta crônica de recursos para fiscalização e pela dificuldade de punir crimes ambientais com rigor e a devida celeridade. Mas não há outra opção a não ser agir, sob pena de abrir a porteira para um futuro irrespirável.