"Todo filme-catástrofe começa com cientistas sendo ignorados", dizia um cartaz que costumava aparecer em protestos nos últimos anos. Na vida real, não é comum que membros da comunidade científica sejam tão dramáticos assim. Mas, nesta semana, o script foi seguido à risca por um grupo de pesquisadores nas páginas de um dos mais importantes periódicos acadêmicos do planeta.
E a mensagem era simples: temos de proibir o desenvolvimento da "vida espelhada". Do contrário, os efeitos sobre todas as formas "tradicionais" de vida na Terra podem ser devastadores.
Prometo que já explico de que diabos os cientistas estão falando. Vale ressaltar, no entanto, que o artigo sobre o tema assinado por eles na revista Science está longe de ser um produto da proverbial meia dúzia de doidinhos.
Entre os nomes de peso do grupo estão um vencedor do Nobel de Medicina (Jack Szostak, da Universidade de Chicago) e o cientista-empreendedor John Craig Venter, um dos responsáveis pela primeira "leitura" do genoma humano no começo deste século. Também assina o alerta a brasileira Daniela Matias Bittencourt, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia.
Dito isso, que ameaça apocalíptica eles temem, afinal? Bem, o que acontece é que, em grande medida, as moléculas que compõem os seres vivos possuem uma orientação espacial definida, designada como quiralidade. Para entender isso, pense nas mãos humanas: os polegares da mão esquerda e da mão direita sempre apontam para direções opostas (a não ser, é claro, que as palmas de cada mão fiquem encostadas uma na outra).
Essa propriedade geométrica vale também para os aminoácidos que compõem as proteínas dos seres vivos, os quais são "canhotos", enquanto os nucleotídeos (letras químicas) do DNA e de sua molécula-prima, o RNA, são "destras".
É possível, claro, fabricar versões espelhadas dessas moléculas, transformando canhotas em destras e vice-versa. Mas, com o avanço da biologia sintética, que tem tido cada vez mais sucesso no objetivo de customizar células vivas inteiras, peça por peça, começou-se a ventilar a possibilidade de criar micro-organismos 100% espelhados.
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No papel, eles poderiam funcionar como agentes terapêuticos, por exemplo, já que não seriam degradados ou atacados com facilidade pelo organismo e, portanto, poderiam liberar fármacos constantemente para tratar determinadas doenças. Mas é justamente essa aparente vantagem, dizem os autores do artigo na Science, que faz com que os riscos representados por eles estejam muito além do aceitável.
Primeiro, apesar da quiralidade invertida, é provável que bactérias sintéticas espelhadas conseguissem se alimentar de nutrientes "aquirais" (moléculas sem a tal orientação preferencial), levando à sua multiplicação.
Além disso, estudos preliminares sugerem que os sistemas de defesa naturais das células não seriam capazes de reconhecer nem de contra-atacar micróbios espelhados. Em tese, nem a produção de anticorpos contra eles seria possível. Não se pode descartar a possibilidade de que eles se tornassem uma espécie invasora universal, parasitando todas as formas de vida que encontrassem.
Daí, claro, o pedido da proibição desse tipo de pesquisa. De fato, não parece uma grande ideia dar esse mole para o azar.