Na semana que passou, circulou por tudo quanto é lugar, inclusive pelo site desta Folha, uma imagem que, à primeira vista, parecia irresistível. Bolinhas de pelo ruivo-louro (ou louro-ruivo, sei lá), espesso e "armado" feito permanente de atriz dos anos 1980, equilibravam-se nas mãos com luvas de alguém paramentado como cientista. Eram camundongos geneticamente modificados para que sua pelagem imitasse algumas das características dos mamutes-lanosos (Mammuthus primigenius), os bichos mais famosos da Era do Gelo.
Vem agora a pergunta que fará alguns dos leitores duvidarem da sanidade do colunista: você não acha que deveria estar fulo da vida com essa imagem, e não encantado?
Bem, se minha reação inicial não foi de empolgação, ela foi se transformando em algo bem mais próximo do desprezo pelo truquezinho biotecnológico ao ler o que escreveu a respeito dele o geneticista britânico Adam Rutherford, em artigo no jornal The Guardian.
Rutherford, autor de excelentes livros que recomendo vivamente, ajudou a explicitar de forma racional a catinga de picaretagem e crueldade que meu inconsciente tinha farejado naquelas fotos. Inspirado em seu texto, tento explicar aqui por que há algo de profundamente escroto no marketing do camundongo-mamute.
Primeiro, vale lembrar por que a empresa de biotecnologia responsável por produzir os roedores felpudos fez esse auê todo: o plano de longo prazo dos sujeitos é, em tese "clonar mamutes".
Caprichemos nas aspas, porque a clonagem propriamente dita exige o acesso a MUITOS núcleos intactos de células vivas, com DNA em excelentes condições, bem como a óvulos igualmente saudáveis com seus núcleos removidos, para que, depois de centenas de gestações, talvez um filhote saudável nasça e sobreviva mais do que algumas horas. Ênfase no "talvez", por gentileza.
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Ocorre que nem o frio mais glacial e sempiterno da Sibéria seria capaz de fornecer aos aprendizes de feiticeiro da biotecnologia tamanha abundância de núcleos celulares. Os óvulos, é verdade, poderiam ser obtidos de parentes modernos dos mamutes –os mais próximos são os elefantes-asiáticos.
Mas, como bem lembra Rutherford, o tempo de separação evolutiva entre as duas espécies é de uns 6 milhões de anos. Ou seja, mais ou menos o mesmo que separa o Homo sapiens dos chimpanzés. Boa sorte para quem acha que seria mamão com açúcar usar óvulos de chimpanzé para clonar seres humanos, ou vice-versa –lembremos que pequenas moléculas fora do núcleo dos óvulos também são muito importantes para o desenvolvimento embrionário.
Tudo isso indica que, no máximo, o que dá para fazer é modificar os genes de um embrião de elefante-asiático, usando os dados do genoma da espécie extinta, para que o bebê SE PAREÇA com um mamute-lanoso. E, é claro, isso seria feito com pouco ou nenhum conhecimento sobre detalhes do desenvolvimento embrionário, necessidades alimentares e comportamentais etc. da espécie extinta.
A cereja do bolo: fazer tudo isso pondo em risco indivíduos de uma espécie inteligente, de vida longa e gestação delicada como os elefantes modernos. Em suma, uma enganação dispendiosa e escrota de gente que não tem mais onde enfiar dinheiro. É preciso uma combinação especial de vaidade e ignorância para cair nesse golpe.