Opinião - Reinaldo José Lopes: A história dos mamíferos é de cair o queixo

há 6 meses 13

Alguma arrogância da parte de mamíferos como nós é perdoável. Faz 65 milhões de anos que mantemos nosso protagonismo entre os vertebrados terrestres, e é natural que fiquemos tentados a imaginar que esse reinado se explica por algum tipo de superioridade. Somos mais inteligentes que os répteis, certo? Nossa calorosa vida familiar e social, com mães cuidadosas e filhotes fofinhos, é inegavelmente melhor que a de bichos que se limitam a enterrar seus ovos na areia e dão o fora. Né?

Bem, clubismo à parte, o fato é que uma das essências evolutivas do que significa ser um mamífero depende de algo muito mais insuspeito e específico: a articulação entre a mandíbula e o crânio.

Meio decepcionante, eu sei. Não é que a pelagem e a amamentação dos filhotes não sejam importantes, mas uma das principais impressões digitais do surgimento dos mamíferos ao longo da evolução é o fato de que temos um único osso, o chamado dentário, abrigando todos os dentes inferiores. Graças a uma "dobradiça" muito especial, esse osso se encaixa num ponto preciso do crânio.

Pode parecer um detalhe insignificante, mas essa inovação, que surgiu há mais de 200 milhões de anos, é uma das chaves para a capacidade de processar alimentos com eficiência por meio da mastigação, um "superpoder" típico dos mamíferos, mas muito raro em outros vertebrados. Ao mesmo tempo, alguns dos outros ossos que antes formavam a mandíbula foram migrando para o ouvido médio, dando origem a três componentes dele, hoje conhecidos como martelo, bigorna e estribo.

Tudo isso já seria suficientemente complicado se acontecesse de forma linear. Descobertas feitas por cientistas brasileiros e seus colegas da Argentina e do Reino Unido, porém, indicam que a formação do encaixe boca-cabeça tipicamente mamífero envolveu uma série de experimentações em diferentes linhagens.

Os detalhes da história acabam de sair em artigo na revista científica Nature, que tem entre seus autores Marina Bento Soares, do Museu Nacional da UFRJ, e Cesar Schultz, da UFRGS.

A dupla e seus colegas usaram microtomografia computadorizada de alta resolução para analisar o crânio do Brasilodon e do Riograndia, dois parentes arcaicos dos mamíferos que viveram no interior do Rio Grande do Sul há 225 milhões de anos.

Os crânios são tão pequenos (entre 3 cm e 4 cm, já que eram bichinhos vagamente semelhantes a camundongos) que só mesmo uma análise tão refinada é capaz de revelar seus segredos. E eis que a tomografia mostrou a tal articulação "mágica", entre o dentário e o chamado osso esquamosal do crânio, no Riograndia, e não no Brasilodon.

Acontece, porém, que todas as outras características dos bichos indicavam que o Brasilodon, e não o Riograndia, era o parente mais próximo dos mamíferos propriamente ditos. E o Riograndia parece ter adquirido sua queixada último modelo 20 milhões de anos antes dos mamíferos!

É uma lição que os cientistas têm aprendido com diversas outras linhagens de seres vivos: em vez de uma trajetória gradual e única, a vida muitas vezes encontra seu caminho por meio de experimentos e idas e vindas —mesmo porque os seres vivos jamais têm como saber qual será o dia de amanhã e quais inovações serão bem-sucedidas. A "superioridade", seja lá como a definamos, é sempre incerta e provisória, inclusive para os atuais soberanos da biosfera.

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