Nos últimos meses, a arte nos trouxe de volta o que de pior e melhor aconteceu ao longo dos sombrios 20 anos da ditadura militar. Guiados pela sensibilidade e inteligência do cineasta Walter Salles, entramos nos porões da tirania, onde opositores eram presos, torturados e, não raro, mortos. O filme "Ainda Estou Aqui" —um êxito de bilheteria— conta a história de Eunice, viúva de Rubens Paiva, ex-deputado do PTB, preso e torturado até a morte por agentes da repressão.
Já em um show visto por multidões, as vozes ainda poderosas de Caetano Veloso e Maria Bethânia rememoram a explosão de rebeldia e criatividade da música popular brasileira dos anos 1970 e que o regime autoritário tentou calar —em vão.
Filme e espetáculo ajudam a formar uma memória afetiva, compartilhada pelos que vivemos e lembramos; pelos que viveram sem perceber o que acontecia; e por todos quantos não haviam nascido quando os militares governaram pela força.
Agora, no finzinho do ano, um historiador da economia e um cientista político vêm contar as peripécias da volta dos civis ao poder e da sofrida —e bem-sucedida— construção da democracia no país. Leonardo Weller e Fernando Limongi, professores da FGV-SP, acabam de publicar "Democracia Negociada: Política Partidária no Brasil da Nova República", competente reconstituição da política brasileira nos 44 anos entre a transição para o Estado de Direito, iniciada em 1974, e o governo Temer (2016-2018). O propósito declarado dos autores é remediar a desmemória do passado recente que frequenta o dia a dia das salas de aula e o debate público.
A história ali narrada é uma montanha-russa de reviravoltas e reveses. Ao fim e ao cabo, a democracia se firmou porque as instituições consagradas na Constituição de 1988 impediam a formação de maiorias claras, requerendo contínua negociação entre os partidos políticos pragmáticos. E, sobretudo, porque lideranças políticas expressivas entenderam o jogo e se dispuseram à negociação e à moderação na busca por soluções de consenso. Além de se comprometer com a regra de ouro que estabelece o respeito ao resultado da competição eleitoral livre, limpa e periódica.
Nesse processo, foram importantes o partido dos desgarrados da ditadura —o PFL— e a legenda que lhe fizera oposição —o MDB/PMDB— bem como sua dissidência agrupada no PSDB. Mas foi também fundamental que as esquerdas convergissem para o PT, uma agremiação não revolucionária de tipo social-democrata, que apostou exclusivamente na democracia representativa, fincando suas raízes na arena eleitoral.
Ademais, a história reconstruída por Weller e Limongi torna patente que as denúncias de corrupção foram desde sempre combustível das crises políticas: no impeachment de Collor; na crise do Mensalão; e, na maior delas, o escândalo do Petrolão que alimentou a Operação Lava Jato.
Finalmente, a leitura do livro é saborosa porque nos lembra que, no dia a dia das disputas que forjaram a democracia, as intenções dos atores com frequência produziram resultados inesperados. Confirma assim a arguta observação do filósofo escocês Adam Ferguson (1732-1816), segundo a qual a história é resultado da ação dos homens e não de seus desígnios.