Num primeiro momento se assume que "Disclaimer" seja sobre um homem uma mulher, um livro e uma vingança. Depois, talvez, sobre duas crianças. Mas não. É uma série sobre duas mulheres e o jeito certo ou errado de "ser mãe".
Até onde se deve ir para proteger um filho? O que é permitido e o que não é? Quando se torna aceitável uma transgressão? O que é uma transgressão, quando se olha para uma mãe? Amar demais o filho? Não amar o suficiente? Ver no filho o que ele não é? Esperar do filho o que ele não pode ser? E até que ponto transgressões similares —ou mais graves— são permitidos aos pais, mas jamais às mães?
O diretor mexicano Alfonso Cuarón ("Roma") já havia visitado parte dos temas dos quais trata nesta série em trabalhos anteriores, notadamente como nossos sentimentos e visão do mundo afetam nossa compreensão dos fatos. Em "Disclaimer" esse limiar volta a ser testado, às vezes às custas da boa-fé do espectador.
Em sua maior parte, a série de sete episódios do Apple TV+, inspirada no livro de Renée Knight (no Brasil, "Difamação", da editora Suma, braço da Companhia da Letras), se ampara em mais uma atuação excepcional de Cate Blanchett, desta vez como uma documentarista reconhecida pela relevância de sua obra, casada com um sujeito protocolar e distanciada do único filho.
Como seu antagonista está Kevin Kline, um viúvo que fetichiza o próprio luto consumido em uma ideia de virtude liberalizante.
Mas são muitos os opostos Catherine Ravenscroft, vivida por Blanchett (e por Leila George na versão jovem), ao longo da história —Cuarón faz, em certa medida, duas versões da mesma personagem duelarem entre si em tempos distintos.
Disclaimer" se desenrola em três tempos e em pelo menos três pontos de vista, cada um com um narrador que desdobra a história numa tentativa um tanto equivocada de manipular o espectador.
No presente encontramos os personagens de Blanchett e Kline em pontos opostos de suas trajetórias: ela premiada, rica, em um casamento harmônico e com suas questões com o filho aparentemente nos trilhos; ele em declínio profissional como professor, numa casa em abandono e solidão quase absoluta.
As outras linhas temporais apresentadas estão no passado, uma no momento do acidente trágico que serve de estopim à história e outra pouco depois dele. Essas linhas serão revisitadas por Cuarón desordenadamente.
Nesse emaranhado narrativo, a série constrói um thriller recheado de sexo, morte e ambiguidades morais relacionadas ao modo como enxergamos mulheres e mães —e a inextrincável associação entre as duas.
O que cabe ou não a uma mãe é o ponto de partida e de retorno do diretor-roteirista. O dilema está dado sobretudo na contraposição dos personagens de Blanchett e da atriz Lesley Manville ("Trama Fantasma"), a mãe que perdeu o filho e preparou uma vingança póstuma para a mulher a quem atribui essa morte.
A mão de Cuarón às vezes pesa, bem como sua recorrente predileção estética por gatos, travelings, e água. A atuação embaraçosa de Sacha Baron Cohen, um excelente comediante e um ator dramático competente, chega a irritar como o marido/pai absorto em si mesmo. E nenhum personagem é do tipo que atraia a simpatia ou a torcida do espectador.
Ainda assim, fica intacta a angústia central da série. Cuarón nos quer cúmplices, e cúmplices somos.
"Disclaimer" estreia nesta sexta (11) na Apple TV+ em sessão dupla, e novos episódios semanais