Moro no Recife desde 2015. Assim que cheguei quis conhecer o Solar dos Apipucos, a famosa casa de Gilberto Freyre na zona norte da cidade, hoje um museu.
O dinheiro obtido com a venda de seu maior clássico, "Casa-grande e Senzala", publicado em 1933, ajudou Freyre a adquirir a então decadente construção em 1940. Tecnicamente não se trata de uma casa-grande, mas de um bonito sobrado. Não importa: no imaginário ela é "a casa-grande de Freyre".
Em 1988, centenário da abolição, um ano após a morte de Freyre, foi inaugurado em frente a sua casa o Motel Senzala, ícone da cidade do Recife.
Resolvi conhecer o Motel Senzala assim que encontrei uma companhia pernambucana. Lá havia suítes "Pelourinho" e "Zumbi", e quartos "Xica da Silva", "Liberdade" e "Quilombo". O que vi nos quartos não fugia ao padrão de qualquer motel que estimula o fetiche do sadismo e masoquismo.
O Motel Senzala unia a sexualidade e a ironia tipicamente nacionais, no limite do dizível. Lembro que no estacionamento do motel havia uma árvore que pendia para fora do estabelecimento. Ao lado, um cartaz: "Não trepe na árvore".
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Em agosto o Senzala mudou de nome, passando a se chamar Soho Motel. Trata-se de uma referência ao descolado bairro nova-iorquino onde, segundo a nova direção, "os tabus não existem". O primeiro post no Instagram do Soho Motel diz: "Um novo ambiente para explorar os prazeres, onde as fantasias se tornam realidade".
Mas não todas as fantasias. Nosso tempo vive a patrulha do tesão alheio. Cada vez menos há distinção entre público e privado. Tudo é político, até a intimidade.
O Soho Motel viu-se obrigado a justificar-se no terceiro post: "É tempo de mudança, e as grades dão lugar à liberdade e ao prazer. Uma transformação interna e externa se faz necessária para marcar o compromisso da nova gestão com o respeito a todas as raças, crenças e gêneros. O motel anteriormente levava um nome que fazia apologia a uma cultura escravista. Mas hoje não podemos permitir essa postura".
A vida privada está cada vez mais submetida a discursos políticos socializantes e deterministas. Sinal dos tempos, até para fazer sacanagem entre quatro paredes é preciso refletir sobre os males da humanidade. Se até um motel compete pelo prêmio de virtuosismo moral na sociedade, restará pouco espaço para as perversões cotidianas e para a complexidade da vida sexual a dois, três ou 20.
Mas o que rolava de fato dentro do Motel Senzala? Será que lá as relações de dominação e submissão não eram invertidas ou até subvertidas? Não seria o motel Senzala um espaço de liberdade, ainda que entre quatro paredes?
As relações sexuais sempre tornaram os brasileiros mais complexos do que gostariam nossos moralistas, religiosos ou laicos. A miscigenação entre negros e brancos, e sobretudo entre os já miscigenados gerando ainda mais mistura, aconteceu mais aqui do que em qualquer outro país do mundo.
O bairro nova-iorquino homenageado pelo novo motel, o Soho, tem 75% de moradores brancos. Apenas 1,7% de seus moradores são negros.
Recalcando nossos dilemas, nos afastamos cada vez mais de nós mesmos. O sexo gourmetizado voltou para a casa-grande.