Em 2010 morei em Buenos Aires. Ao chegar percebi uma gigantesca comoção devido a morte do cantor Sandro, um desconhecido para mim. Sandro estava em todo lugar: TV, bancas, cinemas, discussões, revista de fofocas. Amigos argentinos me criticaram por não conhecê-lo.
Sandro é um dos pais do rock argentino dos anos 60, influente em toda América Latina. De origem cigana, especializou-se na década seguinte como cantor de ritmos latinos. Nosso Sidney Magal, cujo empresário era argentino e conhecia Sandro, foi uma criação a imagem e semelhança do astro portenho. Sandro era uma espécie de Roberto Carlos e Magal juntos. Imagine o tamanho do personagem que eu desconhecia!
Sempre me espanto como seguimos desconhecendo a música de nossos vizinhos. Outro artista argentino praticamente ignorado no Brasil é Fito Paez.
Para quem não conhece Paez, saiba que é possível que você já tenha ouvido suas canções em português. Os Paralamas já gravaram "Trac trac"; Titãs gravaram "Go back" e Caetano Veloso já cantou "11 y 6". Pianista clássico de formação, Paez é um dos principais nomes do rock argentino dos anos 80 até hoje. Mas quantos brasileiros conhecem-no de nome?
Em 2023 ele lançou uma autobiografia lindamente escrita intitulada "Infancia y Juventud: Memorias". Espanta que o livro de um dos maiores artistas argentinos vivos não tenha tradução para o português ainda. É algo que diz muito do nosso desprezo.
Foi com espanto que encontrei há poucos meses a série "El amor después del amor", uma cinebiografia do artista na Netflix. É uma aula sobre como se fazer séries biográficas com roteiro de qualidade. Lançada no ano passado, a produção foi praticamente ignorada no Brasil, embora idolatrada em sua terra natal.
O desconhecimento brasileiro sobre Fito fica ainda mais evidente ao se constatar a tradução do título de sua série. No Brasil ela foi lançada com o pavoroso título de "Amor e música", ignorando-se que o original faz referência a uma bela canção do pianista.
Ao contrário de nós, Fito sempre foi um atento ouvinte da música do outro lado da fronteira. Seu LP de estréia, lançado em 1984, cita Tom Jobim na música que dá título ao disco, "Del 63". Sua autobiografia cita Chico Buarque na introdução. Ao longo do belo texto ele faz referências a Paralamas, Elis, Gal, Arnaldo Antunes, Elza Soares, Egberto Gismonti, Djavan, Kleiton & Kledir, Milton e Caetano. Que artista brasileiro é capaz de citar tantos artistas argentinos?
Mas há no Brasil quem nunca tenha ficado de costas para a música de nossos vizinhos. A música sertaneja sempre se interessou por nossos hermanos. Desde os anos 1950, o bolero e a rancheira mexicanos, o chamamé argentino e a guarânia e polcas paraguaias são influências dos cantores do sertão.
Mais recentemente a música sertaneja vem sendo influenciada pelo reggaeton surgido no Panamá e disseminado pelo mundo através de Porto Rico. Na última década também a bachata, gênero de origem dominicana, adentrou a música sertaneja.
É comum dizer que o Brasil está de costas para a América Latina. Quem sempre esteve de costas foi a música das capitais brasileiras do Sudeste. O Brasilzão interiorano, este sempre esteve atento à América Latina.