Fazia tempo que um filme sobre a ditadura não causava tanto rebuliço na sociedade brasileira. "Ainda Estou Aqui", filme de Walter Salles nos cinemas, encanta pela delicadeza do drama íntimo em meio ao contexto político atribulado.
Com reconstituição de época louvável, o filme começa retratando o fim do ano de 1970. O ex-deputado trabalhista Rubens Paiva, interpretado por um bonachão Selton Mello, tem vida dupla desconhecida da família. Nas sombras, ajuda a resistência à ditadura. No dia a dia vive as alegrias de uma família rica de bem com a vida, numa linda casa no Leblon. Tudo muda quando ele é sequestrado por militares, torturado, morto, e seu corpo desaparece.
Sua mulher, Eunice, a heroína interpretada por Fernanda Torres, também é presa, violentada e interrogada. O filme é sobre essa mulher, forçada pela conjuntura a conduzir a família à nova vida, sem abandonar a luta pelo direito de saber o que aconteceu com o marido.
A sensibilidade da câmera de Walter Salles nos leva para dentro da intimidade familiar. Nesta empreitada, Salles é talentoso como poucos cineastas brasileiros. Baseado no livro homônimo do filho Marcelo Rubens Paiva, "Ainda Estou Aqui" é sensível, mas também é definitivamente um filme político, brutal e pesado a partir da segunda metade.
Mas não é um filme sobre luta armada. Não é sobre a resistência política da sociedade, embora ela esteja lá. Não é mera denúncia dos arbítrios ditatoriais, embora isso também esteja lá. Se por político entende-se personagens com discursos prontos na boca, o cinema íntimo de Walter Salles não peca por essa ingenuidade.
A trilha sonora ilustra esse deslocamento do tom político para além do comum. Walter Salles ignorou o grande mito musical da resistência à ditadura, Chico Buarque, e inseriu Tom Zé, Gal Costa, Erasmo Carlos, Caetano Veloso e duas vezes Roberto Carlos. Outras palavras, como diria o baiano.
O filme de Walter Salles acertou para além de onde mirou. Em nome de um roteiro que heroiciza a matriarca Eunice, há uma simplificação de relações familiares na primeira metade do filme. Os Paiva parecem uma família de margarina numa casa solar à beira-mar, e Rubens um pai perfeito de cinco filhos. Ganharíamos mais se as relações intrafamiliares fossem melhor exploradas e Rubens Paiva mais complexo.
A idealização serve para nos conduzir ao clima sombrio da segunda parte, na qual se reforça a metáfora batida dos porões da ditadura.
Ao glorificar a mulher empoderada diante da morte do marido, o filme diminui-se. Os saltos temporais servem apenas para exaltar dramaturgicamente a heroína, fazendo da ilusão biográfica um mote simplista de linearidade da vida.
O filme poderia acabar bem antes, sem os largos saltos temporais da terceira parte, que o deixaram mais longo do que deveria. A despedida da casa na praia, como símbolo de um tempo que não volta mais, já seria um final bom o suficiente.
É nesse sentido que o filme de Salles acerta onde não queria. Salles tentou fazer um filme que louva uma mulher. Mas o filme é, durante a maior parte do tempo, sobre a delicadeza do tempo perdido. Isso é extremamente político. E sentimental. Um grande filme.