Opinião - Djamila Ribeiro: Ewá, orixá ligada à pureza, ao mistério e à clarividência

há 3 meses 3

As cobras desempenham um papel crucial no equilíbrio dos ecossistemas. Elas regulam a população de pequenos mamíferos e outros animais, enquanto também são presas indispensáveis na cadeia alimentar de vários predadores. Além disso, as cobras são dotadas de uma tecnologia natural impressionante: sua língua bifurcada, por exemplo, serve a múltiplas funções, como olfato, orientação e localização de presas, além da detecção de outras cobras. São independentes, locomovem-se rapidamente e trocam de pele para crescer de tamanho.

Esses animais sempre fascinaram diferentes culturas, sendo símbolos de divindades em várias mitologias. Lembro-me de quando, há dois anos, visitei a Cidade do México e explorei as pirâmides do Sol e da Lua, construções fabulosas dos povos mesoamericanos. As pirâmides foram erguidas em homenagem à serpente emplumada Quetzalcoatl, uma das divindades mais importantes das civilizações maia e asteca.

Na mitologia egípcia, Wadjet, a deusa cobra, era a protetora dos faraós. Na mitologia grega, as serpentes estão associadas ao deus da cura e medicina, Esculápio, e à figura de Medusa, na qual as cobras em sua cabeça simbolizam o poder feminino. A lenda de Shahmaran contra sobre o ser mítico metade serpente e metade mulher, sendo representada em várias culturas do Oriente Médio, mas especialmente na região da Anatólia, na Turquia. E como não lembrar do próprio folclore brasileiro e suas histórias sobre boitatá, a serpente de fogo que protege as florestas?

Contudo, a tradição cristã ajudou a moldar a má reputação desse complexo animal, especialmente com a narrativa de Gênesis, onde a serpente é retratada como símbolo de tentação e traição, por ter convencido Adão e Eva a comerem o fruto proibido e trazerem o pecado para o mundo.

Essa má fama é tão enraizada que as serpentes entraram em nosso vocabulário cotidiano com conotações negativas. Cresci ouvindo expressões como "fulano é uma cobra", "sicrana é uma víbora", "beltrana é uma jararaca". Há algum tempo venho me esforçando para evitar essas expressões, reconhecendo o valor das cobras, especialmente à luz de sua importância simbólica em várias culturas.

Isso porque, no candomblé, a cobra é adorada e está associada a dois orixás que são irmãos: Oxumarê e Ewá. Nesta coluna, vamos nos concentrar em Ewá, uma divindade ligada à pureza, ao mistério e à clarividência, o que conhecemos também por sexto sentido.

Muitas vezes descrita como uma caçadora casta, Ewá mantém uma relação íntima com os elementos da natureza, como o horizonte e especialmente a névoa –símbolo de seu poder enigmático. A névoa oculta o visível e revela o oculto conforme a vontade de Ewá, reforçando seu domínio sobre o segredo e a verdade.

Ewá é uma caçadora habilidosa, mestra no uso do arco e da flecha. Ela também dá nome ao rio Yewá, que atravessa o Benin e a Nigéria e é morada de muitas cobras. Sua capacidade de "caçar" transcende o sentido literal e está ligada a ver além, como também em ser uma predadora silenciosa, indecifrável, tal qual a névoa. Tal qual a cobra.

Um dos domínios de Ewá é o cemitério, onde muitos segredos estão enterrados. Conta um dos itãs a seu respeito sobre o encontro com Xangô, o poderoso orixá do trovão e do fogo. Xangô, conhecido por seu temperamento imponente e sua sede por poder, estava determinado a conquistá-la, mas ela fugia de suas investidas como podia.

Um dia, ele estava a dançar em um dos territórios de Ewá, onde a neblina tomava conta de todo o local. Ela foi caçoar da forma como ele dançava para cortejá-la e perguntou se ele não notou onde estava a dançar. Xangô, todo cheio de si, disse que ele dançaria como quisesse e onde desejasse.

Ewá deixou bem claro que ali ela era quem governava e saiu, levando consigo a névoa, ao que Xangô notou estar em um cemitério. Toda a energia e a audácia do rei se dissiparam ali, pois a única coisa a que ele tem aversão é à morte e o cemitério lhe apavora. Xangô, então, saiu dali correndo no mesmo instante, para gargalhada da senhora do oculto.

A castidade de Ewá não se refere apenas à relação sexual, mas abrange sua mente e sua capacidade de manter-se alheia às influências negativas. A castidade Ewá diz menos sobre uma forma de inocência, virgindade e mais sobre seu foco espiritual em proteger o que é sagrado.

Todas

Discussões, notícias e reflexões pensadas para mulheres

Muitas vezes não conseguimos entender onde estamos ou para onde estamos indo, como me senti ao ver o último resultado eleitoral. Uma névoa se formou para aqueles que ainda têm esperança em uma humanidade mais consciente e responsável nos tempos futuros. Nesses momentos, busco refúgio em Ewá e rogo pelas bênçãos de quem acompanha os povos de terreiro há séculos neste país.

Se eu não sei o caminho, confio que a senhora do oculto saberá. Então, certa de que estamos em uma longa caminhada, acendo minha vela e sigo trabalhando. Riró, Ewá!

Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com dois meses de assinatura digital grátis.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

Leia o artigo completo